A Cidade Invisível #1 - Charles Baudelaire

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Textos:

Charles Baudelaire
- Paraísos Artificiais
- Petits Poèmes en Prose [in Le Figaro 07/FEV/1864]
- Ciclo de poesias do Vinho das Flores do Mal


Palylist:

Kammerflimmer Kollektief - Die Vögel sangen draußen ihre ungereimte Melodie
Jon Hassell - Power Spot
Cliff Martinez - On the Beach
Brian Eno & Jah Wobble - Transmitter and Trumpet
Tom Jobim - Captain Bacardi
Lloyd Cole & Roedelius - Still Life with Kannyu
Cliff Martinez - After the Chase
Lloyd Cole & Roedelius - Virgine L

A Cidade Invisível. Segundo Acto.

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Perdido no esquecimento do virar dos milénios.

A verdade, essa, jaz junto de uma Providência há muito adormecida.

Nunca mais voltaria a esta cidade... E, no entanto, palavras repetidas num volátil éter, onde o negro veludo acaricia os mirabolantes pensares do Criador, regressam e confundem-se com os anónimos transeuntes. O deambular sóbrio por entre ruas e becos amontoados de abandono.



Já nada interessa.


Segundo Acto.


A Cidade Invisível.

Programa N.º 12 [13/OUT/2010]

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[podcast não disponível]





Capítulo 1: A última viagem

Fechem os olhos e sejam novamente bem-vindos à Cidade Invisível.

Uma cidade, onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos.

Já me decidi.

Vou sair desta Cidade Invisível. Vou voltar àquilo que tanto repudio.

Não faz sentido estar aqui.

Aquele estranha semelhante, pela qual tanto viajei, e da qual me chegaram aos ouvidos palavras aparentemente conhecedoras de razão não me serviram de nada.

Estou exausto de tanto procurar a adormecida Providência. Estou farto de conhecer sensações descontextualizadas e ambivalentes.

Já nada faz sentido. Vou sair deste quarto. Vou de novo ao encontro daquele miraculoso raio de luz do esquecido jardim.

Mas, desta vez, não vou ceder. Vou deixar toda a luz imobilizar-me as pálpebras, continuar na senda do desconhecido, rumo ao acordar e viver dormido de olhos bem abertos.




Capítulo 2: A última viagem

Esta viagem, esta rotina.

Estou sempre a revisitar os mesmos sítios. Caminho em espirais do nada. Incertezas... Revisitações a sítios que nada são.

Que ódio me dá este triste incondicionalismo em me identificar com ignóbeis caricaturas do belo.

As minhas caminhadas já nada mais são que imposições do fatal destino que bem sei que urge.

Já não faz sentido sequer descrever os meus movimentos, Seriam capazes de adormecer a eternidade.

Entretanto já cheguei junto daquela luz que tanto vos falo e massacro o pensar.

Mas, desta vez, o propósito será outro.

Vou-me entregar resolutamente ao desconhecido. Vou fechar os olhos como nunca. Ansiar voltar a viver adormecido.

Mas já basta de panaceias líricas. Vou fazê-lo.





Capítulo 3: A última viagem (2)

Nada. Estou aqui de olhos fechados como nunca e nada acontece.

Não sei mais que fazer.

O que estará errado? Que fiz da outra vez que agora não resulta.

Vou continuar aqui de pálpebras cerradas. Nada me fará recuar. Já não há nada que anseie mais que isto.





Capítulo 4: A última viagem (3)

Os ventos frios, vindos dos arrabaldes da Cidade Invisível, já se fazem sentir. A noite não tardará em cair. Digo noite, mas aqui é sempre de noite. No ver e no sentir.

Excepto para raras excepções, como este pequeno raio de luz natural que ousa penetrar por entre emaranhados de ferros retorcidos e permanecer neste éter inútil.

Mas... Continuo na mesma. Ou isso penso, pois ainda não abri os olhos. Aliás, cada vez os fecho mais.

Não há maneira de voltar a sentir aquela estranha sensação.

Se calhar não basta fechar os olhos, é necessário também adormecer. Recurso extremo e pecaminoso.

Mas não interessa. Aqui, nada justifica o acreditar justo. Mais, o justo aqui é mais ambíguo que a ténue linha que separa o dormir e o estar acordado.

Vou-me deitar e, finamente dormir.

Não entendo. Tanto fiz para voltar a esta cidade e, agora, tudo faço para dela partir.

Somos mesmo assim, buscamos algo que não sabemos em sítios retomados que julgávamos não ter esquecido.

É o despedir destas caminhadas pela Cidade Invisível. Nunca mais cá regressarei.

Parto com saudade de algo que nem cheguei a amar. Melhor, volto a partir de algo que pensava amar.

Entretanto, as pálpebras já cansadas da repetição obrigam-me a partir em viagem desconhecida.

Não a impeço. Vou-me deixar levar...





Capítulo 5: A adormecida Providência

Onde estou?

Acabei de acordar e mal consigo ver.

Tento olhar em meu redor mas a luz é tanta que os olhos voltam-se a fechar.

Creio ser causa da luz natural. Isso indica que já não estou na Cidade Invisível.

Já consigo ligeiramente os olhos. O suficiente para reconhecer o local onde me encontro.

É o local onde levei ano, ou talvez séculos dormidos de olhos bem abertos.

Mas, desta vez, não estou só no acordar.

Diante de mim, uma forma feminina, de longos cabelos negros, chama por mim.

Mas... Se é aquela estranha semelhante que encontrei na Cidade Invisível, que me fez percorrer os mais mirabolantes e inóspitos locais, em busca de um outro desígnio.

Olho para o seu rosto, olhar, desta vez, retribuído sem estranhas complicações, ao que acrescenta as palavras: “Respiraste a violação do dever pelos poros. Regressaste onde jaz a Providência adormecida”.

São as palavras que me tinha dito na Cidade Invisível.

Tanto busquei, que, afinal, não era lá que a encontraria.

Erro crasso o meu querer viver naquele éter inútil.

A partir de hoje, jamais regressarei lá. Nem sei porque busco no mais volátil e denso sonho, pintado em tons de falsídica felicidade eterna o meu desígnio.

Nada mais somos que ossos e carne. Não há nada para além disto. Nem a maior ilusão utópica do homem seria tão perfeita como o que o virar dos milénios criou.

Isto somos nós, o que todos os semelhantes quisemos. Um mundo tão perfeito como nós.

Programa N.º 11 [06/OUT/2010]

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Capítulo 1: A persistência da horizontalidade

Após longas horas, ainda aqui me encontro, entregue ao abandono desta silenciosa solidão.

O meu pensar imobilizou-me de novo neste quarto, nesta cama.

Já se passaram tantos dias, ou talvez séculos, desde voltei a acordar neste quarto, do qual parti em busca de algo que nem bem o seria e, no entanto, regressei ao ponto de partida.

Não sei mais o que fazer ou o que procurar. Começo a pensar que talvez seja melhor voltar a viver dormido, de olhos bem abertos.

Triste pensar, mas o incondicionalismo das minhas limitações enquanto simples transeunte não me permitem mais.

Vou voltar àquele jardim, sob as linhas do velho eléctrico. Talvez os floridos fitomorfos e forte luz que o encaminha me reactive algo que levo adormecido.



Capítulo 2: A viagem (parte 1)

A viagem faz-se longa. Coloco um pé diante do outro apenas para não me entregar de novo à imobilidade.

Sei que viajo em vão. Lá nada vai haver.

Volto a sentir a triste angústia em ter pensamentos labirínticos e espirais.

Creio ter perdido de novo a vontade de continuar na Cidade Invisível.



Capítulo 3: A viagem (parte 2)

Já cheguei ao jardim que vos falei.

Aqueles coloridos fitomorfos que visitei na minha primeira viagem estão ainda mais coloridos.

A sua caminhada em direcção à luz, embalados por um ténue fio de água, está cada vez mais próxima do final.

Não é a ausência da razão impedimento para fazer aquilo que a nossa a tanto nos obriga.

Procuram algo mais claro, mais simples, onde os tons não são mera ambivalência.

No entanto, a sua metodologia para o conseguir faz-nos tapar, a nós transeuntes, a cara de vergonha.

Talvez seja tempo de incapacitar a vontade e ceder à indiferença.



Capítulo 4: Retorno à horizontalidade

Vou colocar a minha face directamente sobre aquele raio que miraculosamente trespassa o amontoado de ferro enegrecido e ousa incidir sobre a Cidade Invisível.

A luz é demasiadamente forte. Obriga-me a fechar os olhos como há muito não os fechava.

Estranha sensação. Agora que reparo, há já muito que não fechava os olhos. Isto traz-me demasiadas recordações. É quase que regressar aos longos anos que levei dormidos de olhos bem abertos.

Mas, não pode ser. Está tudo trocado. Como posso eu viver esta desprezível recordação quando, na realidade, tenho os olhos mais fechados que nunca?

É melhor sair daqui e volta-los a abrir.

Estou algo intrigado. Parece que esta Cidade nada mais é que um volátil éter, ao qual regressei, mas que dele posso desaparecer novamente a qualquer instante.

Aqui, não há espaço para luz. Nem cores. Aqui, só o negro cáustico faz sentido. É a ele que me devo prestar.



Capítulo 5: Recomeçar

Já abandonei aquele jardim. Caminho a passos largos em direcção a casa, novamente.

Sinto uma enorme necessidade em descobrir esta paradigmática sensação que é fechar bem os olhos e sentir e sentir que estou a dormir.

Só a mais distante e mirabolante lenda seria capaz de contar semelhante hebetismo. Não conheço ou concebo a ideia de o Homem dormir de olhos fechados.

Agora que me recordo, pairam histórias por esta cidade que em tempos idos, que o virar dos milénios tenderam em ocultar, os nossos semelhantes viviam acordados de olhos bem abertos.

Triste ideia. Mas não descuro.

Vou até casa, sentar-me. Vou pensar nesta ideia, fechar bem os olhos.

Vou tentar entregar-me de novo a algo que tanto repudiei.

Sentir de novo o viver adormecido de olhos bem abertos. Mas, desta vez, acontecerá o contrário. Dormir de olhos fechados. Processo raro, mas que tanto se assoma à minha vontade e curiosidade.

Nada temo, pois, no máximo, regressarei àquele lugar onde durante vários séculos me entreguei ao negro devolutismo em tons dormentes.



Playlist:

Kammerflimmer Kollektief - In Transition (Version) [Wilding, 2010]
Sigur Rós - Hafsól [Von, 1997]
Conrad Schnitzler - Electric Garden [Con, 1978]
Vangelis - Blade Runner Blues [Blade Runner OST, 1982]
Lubomyr Melnyk - The Voice of Trees 3 [The Voice of Trees, 1985]

Programa N.º 11 [06/OUT/2010]

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Capítulo 1: A persistência da horizontalidade

Após longas horas, ainda aqui me encontro, entregue ao abandono desta silenciosa solidão.

O meu pensar imobilizou-me de novo neste quarto, nesta cama.

Já se passaram tantos dias, ou talvez séculos, desde voltei a acordar neste quarto, do qual parti em busca de algo que nem bem o seria e, no entanto, regressei ao ponto de partida.


Não sei mais o que fazer ou o que procurar. Começo a pensar que talvez seja melhor voltar a viver dormido, de olhos bem abertos.

Triste pensar, mas o incondicionalismo das minhas limitações enquanto simples transeunte não me permitem mais.

Vou voltar àquele jardim, sob as linhas do velho eléctrico. Talvez os floridos fitomorfos e forte luz que o encaminha me reactive algo que levo adormecido.



Capítulo 2: A viagem (parte 1)

A viagem faz-se longa. Coloco um pé diante do outro apenas para não me entregar de novo à imobilidade.

Sei que viajo em vão. Lá nada vai haver.

Volto a sentir a triste angústia em ter pensamentos labirínticos e espirais.

Creio ter perdido de novo a vontade de continuar na Cidade Invisível.



Capítulo 3: A viagem (parte 2)

Já cheguei ao jardim que vos falei.

Aqueles coloridos fitomorfos que visitei na minha primeira viagem estão ainda mais coloridos.

A sua caminhada em direcção à luz, embalados por um ténue fio de água, está cada vez mais próxima do final.

Não é a ausência da razão impedimento para fazer aquilo que a nossa a tanto nos obriga.

Procuram algo mais claro, mais simples, onde os tons não são mera ambivalência.

No entanto, a sua metodologia para o conseguir faz-nos tapar, a nós transeuntes, a cara de vergonha.

Talvez seja tempo de incapacitar a vontade e ceder à indiferença.



Capítulo 4: Retorno à horizontalidade

Vou colocar a minha face directamente sobre aquele raio que miraculosamente trespassa o amontoado de ferro enegrecido e ousa incidir sobre a Cidade Invisível.

A luz é demasiadamente forte. Obriga-me a fechar os olhos como há muito não os fechava.

Estranha sensação. Agora que reparo, há já muito que não fechava os olhos. Isto traz-me demasiadas recordações. É quase que regressar aos longos anos que levei dormidos de olhos bem abertos.

Mas, não pode ser. Está tudo trocado. Como posso eu viver esta desprezível recordação quando, na realidade, tenho os olhos mais fechados que nunca?

É melhor sair daqui e volta-los a abrir.

Estou algo intrigado. Parece que esta Cidade nada mais é que um volátil éter, ao qual regressei, mas que dele posso desaparecer novamente a qualquer instante.

Aqui, não há espaço para luz. Nem cores. Aqui, só o negro cáustico faz sentido. É a ele que me devo prestar.



Capítulo 5: Recomeçar

Já abandonei aquele jardim. Caminho a passos largos em direcção a casa, novamente.

Sinto uma enorme necessidade em descobrir esta paradigmática sensação que é fechar bem os olhos e sentir e sentir que estou a dormir.

Só a mais distante e mirabolante lenda seria capaz de contar semelhante hebetismo. Não conheço ou concebo a ideia de o Homem dormir de olhos fechados.

Agora que me recordo, pairam histórias por esta cidade que em tempos idos, que o virar dos milénios tenderam em ocultar, os nossos semelhantes viviam acordados de olhos bem abertos.

Triste ideia. Mas não descuro.

Vou até casa, sentar-me. Vou pensar nesta ideia, fechar bem os olhos.

Vou tentar entregar-me de novo a algo que tanto repudiei.

Sentir de novo o viver adormecido de olhos bem abertos. Mas, desta vez, acontecerá o contrário. Dormir de olhos fechados. Processo raro, mas que tanto se assoma à minha vontade e curiosidade.

Nada temo, pois, no máximo, regressarei àquele lugar onde durante vários séculos me entreguei ao negro devolutismo em tons dormentes.



Playlist:

Kammerflimmer Kollektief - In Transition (Version) [Wilding, 2010]
Sigur Rós - Hafsól [Von, 1997]
Conrad Schnitzler - Electric Garden [Con, 1978]
Vangelis - Blade Runner Blues [Blade Runner OST, 1982]
Lubomyr Melnyk - The Voice of Trees 3 [The Voice of Trees, 1985]

Programa N.º 10 [22/SET/2010]

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Capítulo 1: Do templo ao jardim

Conforme ficou prometido, parti rumo àquele jardim que vos falei.

A viagem não foi longa, mas sim particular.

Quando sai daquele templo, uma terrível ânsia em contradizer a minha vontade e dever tomou conta de mim.

Estou farto de caminhar em busca de algo e nunca o encontrar. Triste desígnio, cuja fatalidade do destino o encaminha sempre para o vazio.

Mas já é tarde para estes desvios no pensar. Foram muitos os tempos e sítios diferentes que me colocaram nesta senda de um vácuo futuro.

Mas porque me questiono eu em demasia? Até parece que voltar a dormir de olhos bem abertos me conduziu a algo maior.

O jardim já está perto, é para lá que me encaminho.



Capítulo 2: O jardim (sul)

Já estou muito próximo do jardim.

Mas, o que avisto ao longe, como era já expectável, são sombras de um passado de verdejantes fitomorfos.

Na Cidade Invisível um jardim nada mais é que um negativo de extintos espaços floridos, hoje apenas reconhecidos por se tratarem de vãos entre monumentais estruturas verticais, ladeados pelo desprezo humano.

O único de original que ali espero encontrar, é uma enorme pedra, cujo medo e estupidificação do Homem transformou em algo sagrado, adornada de mirabolantes e patéticas histórias, em tons de anjos e renascimentos da há já muito adormecida Providência.

O certo é que nem sei o que vim aqui fazer. Agora que cheguei, sinto o meu pensar questionar a minha vontade com o tom mais jocoso que possais imaginar.

Este era um local que visitava regularmente há muitos anos, ou talvez séculos, em ingénua idade, acompanhado por alguns semelhantes. Infindos dias aqueles.

Não vim aqui procurar a adormecida Providência, vim sim em busca de um local onde, em tempos, a minha parca existência se resumia à triste ideia de acreditar no amanhã.

Vou partir. Sem propósito. Vou deambular pelas rua da Cidade Invisível.



Capítulo 3: As rua da Cidade Invisível (parte 1)

Já há muito que não deambulava pelas ruas da Cidade Invisível.

Este negro frio, a velocidade a que se deslocam os transeuntes, as ruas e becos amontoados de abandono…

O devolutismo cresce como uma hera pelos edifícios, deixando os andares mais baixos entregues ao abandono ou, por vezes, entregues a tristes semelhantes, que nada mais têm que a ânsia do final do seu ciclo.

Não há vozes, não ha diálogos. Só se ouvem os ruídos do movimentar citadino.

Ao fundo, uma luz ténue transborda por um enorme vidro. Lá dentro, alguns semelhantes fazem companhia a um balcão, onde o álcool lhes assegura uma vida de olhos bem fechados.

Não quero entrar, vou continuar a minha caminhada.



Capítulo 4: As rua da Cidade Invisível (parte 2)

Já estou farto de caminhar.

Não há nada nesta cidade que revisitar. Caminho, caminho. Olho em volta e parece que estou sempre no mesmo local.

O ritmo a que a paisagem urbana me aparece diante dos olhos é quase perpétuo.

Parece que me encontro numa espiral de abandono e esquecimento, da qual, em virtude das monumentais construções, jamais conseguirei sair.

Não sei mais onde procurar a adormecida Providência.

É hora de regressar a casa.



Capítulo 5: As rua da Cidade Invisível (parte 3)

Paro diante do meu prédio.

Olho para cima e penso: porque regresso sempre a este sítio do qual parto em busca de um outro desígnio?

Foi aqui que me entreguei à triste realidade que é dormir de olhos bem abertos.

Certo é que hoje só revisitei locais que a minha memória guarda como longínquas paisagens desprovidas de qualquer negro e desilusão.

Tenho de repensar todo o meu desígnio, todos os passos dados neste flutuante vácuo.

Vou subir, regressar ao meu quarto.

Talvez me volte a deitar, não sei.

Cada vez mais, sinto que nada vale a pena na Cidade Invisível.



Playlist:

John Cale & Terry Riley - Church of Anthrax [Church of Anthrax, 1970]
Tony Conrad - Heterophony Of The Avenging Democrats (excerto) [Slapping Pythagoras, 1995]
Yahowa 13 - Journey Thru An Elemental Kingdom [Penetration: An Aquarian Symphony, 1974]
Ash Ra Temple - Darkness: Flowers Must Die [Schwingungen, 1972]
Eno Moebius Roedelius - Oil [After The Heat, 1978]
Glenn Branca - The Ascension (excerto) [The Ascension, 1981]

Programa N.º 9 [15/SET/2010]

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Capítulo 1: O Templo

Conforme ficou prometido, ainda aqui estou, sentado em frente a este smi-devoluto edifício.

Nem o negro e solitário frio do passar das horas nesta Cidade me fez abandonar esta praça central, onde a eterna pendular movimentação de transeuntes, cuja imobilidade lhes faria pensar no que fazer, é de tal modo frenética que seria capaz de cansar o mais ávido dos atletas.


O certo é que ainda ninguém abriu a porta, nem se escutou o mais pequeno ruído do interior, a não ser um quase perpétuo gotear, que ressoa em toda a sala, dando origem a um solitária e longínqua paisagem.

Vou continuar à espera que alguém me abra esta porta.

Vou continuar no coração da Cidade Invisível.



Capítulo 2: A porta do templo

Parece que escuto passos no interior.

Alguém caminha de forma sincopada com o gotear que lá dentro também de faz ouvir.

Mas são só passos. Não escuto qualquer voz. Caminha longe. Passos delicados.

Para e volta a caminhar, de forma não ritmada. Como que se estivesse a cuidar de algo.

O ferrolho desta porta é tão pequeno que apenas consigo ver claridade e através dele, um ar fresco, arrepia-me a retina.

Vou bater à porta!

Nada! Ninguém me responde. Mas, desta vez, oiço passos em direcção à porta.

Um ruído fez-se ouvir do outro lado. Como que se a porta tivesse sido destrancada.

Confirma-se. A porta foi mesmo aberta.

Vou entrar e já vos conto o que há dentro deste edifício.



Capítulo 3: Dentro do templo

Já estou dentro do templo.

O espaço encontra-se completamente abandonado. Os bancos desfeitos, desorganizados. Há vidros partidos por todo o lado.

Poças de água, correntes de ar. O espaço está frescamente entregue ao devolutismo.

O chão e paredes, em claros tons de cinzento, por estranho que pareça, não apresentam quaisquer vestígios de pegadas.

O telhado, esse, há já muito tempo que deixa entrar água e toda a espécie de porcaria que flutua pelo triste éter da Cidade Invisível.

Mais ao fundo, existe uma porta, smi-aberta. Com certeza dá acesso a outra sala mais pequena.

Junto a essa porta, existem alguns verdes fitomórfos, cuidadosamente tratados.

Vou entrar, talvez lá encontre a pessoa que me deixou visitar o interior de este edifício.



Capítulo 4: A sala do templo

Já há algum tempo que estou dentro da divisão que vos falei.

Ao contrário da ala principal do templo, esta pequena sala é escura. O ar é pesado. Apenas um vela ilumina o espaço. Também não seria necessário nada mais forte, dada a sua exiguidade.

Pequenos utensílios estão espalhados por uma mesa, bem como alguns livros.

Uma cama, de estrutura em ferro, completa o mobiliário deste modeste espaço.

Vê-se que nela dorme regularmente alguém.

É um espaço onde a simplicidade e a austeridade se impõe.

Quem habitará este espaço? E porque se respira semelhante nauseabundo cheiro cá dentro?

Será este o sítio onde jaz adormecida a Providência? Não pode ser. Triste paródia se assim o fosse.

Agora que reparo melhor, sobre a mesa está um papel com algo escrito, com uma caligrafia muito hesitante.

Podem-se ler as seguintes palavras: Aqui já nada existe. A ânsia pelo que bem sabemos que não existe já não faz sentido. A Providência jaz onde, em tempos idos, foi acordada.

Esse local só pode ser junto de um jardim no Sul da Cidade, onde existe uma pedra, que com o passar dos milénios se foi associando ao local onde a adormecida Providência renasceu e nos condenou ao eterno terror de viver acordados de olhos bem fechados.

É para lá que vou.

É o meu novo destino n’A Cidade Invisível.


Playlist:

Harmonia - Walky-Talky [Deluxe, 1975]
Hans-Joachim Roedelius - Durch Die Wüste [Durch die Wüste, 1978]
Cluster & Eno - One [Cluster & Eno, 1977]
Manuel Gottsching - Quiet Nervousness [E2-E4, 1984]
Kraftwerk - Autobahn (excerto) [Autobahn, 1974]
La Düsseldorf - Rheinita [Viva, 1978]