Programa n.º 1 [21/JUL/2010]

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Capítulo 1: O acordar, o começo…


Fechem os olhos e sejam bem-vindos a esta Cidade.

É uma cidade onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos.

Aqui, em tempos idos, uma falsídica luz fotossinteziava emaranhadas ramas de solidão que julgava ter por companheira. É uma cidade onde as utopias apenas são alcançadas através de espelhos deformados pelo negro coração do Homem.

Aqui nada faz sentido para além das procelosas melodias que a Providência adormecida estilhaçou e que agora flutuam vacuamente por todo este éter inútil.

Já há muito tempo que não me levantava desta cama, onde julgava, que por força imobilidade, venceria a terrível angústia de viver de olhos fechados.

Não faz sentido. O Criador, esse, jamais será vencido.

Vou sair daqui. A partir de hoje, darei longas caminhadas por esta cidade, irei até aos sítios mais mirabolantes. Ouvirei histórias. Abrenunciarei o negro cáustico desses tempo idos. Voltarei a acreditar em promessas de um futuro vacuamente flutuante.

Afinal, sou mais um anónimo transeunte, que se junta e se confunde com todas as outras personagens anónimas. Bem o sei, faço parte do carácter desta cidade: A Cidade Invisível.



Capítulo 2: O despertar

Não sei, sinto-me um bocado desorientado. Afinal, já perdi a noção de quantos anos, ou talvez séculos, levo dormidos de olhos bem abertos. Já quase não me lembrava do que é estar acordado de olhos fechados.

Entretanto, já abri a pequena janela deste quarto, por onde entra uma luz fátua, que ainda se consegue sobrepor ao pérfido e adormecido eleatismo do Homem.

Lá fora, os transeuntes viajam a uma velocidade tão rápida como a ânsia que têm que chegue o dia em que a sua força seja mais forte que a vontade.

Porém, alguns ainda param. Admiram a verticalidade urbana imposta pelo torvo nojo que o homem sente pelo seu semelhante. O desespero por uma elevação de alguns metros parece adiar uns dias a inevitável redução incondicional ao insignificante de alguns personagens anónimos.

Como pode o Homem querer viver fora desta cidade, quando a sua perseverança lhe bloqueia as articulações da mão com que rescreve as leis do Criador?

Como pode o Homem partir desta cidade quando nem a solidão consegue ter por companheira?

Pior ainda, como posso eu criticar a Cidade Invisível se nem da minha cama me levanto?

É hora de sair. Vou começar a viagem.



Capítulo 3: O primeiro contacto com a Cidade Invisível

Este som que escuto em fundo, este aroma que me reactiva memórias que julgava ter por fantasia… Faz tanto tempo que não me juntava com a multidão.

Estranhamente, parece que os longos anos que dormi de olhos abertos duraram menos tempo que estes instantes de descer do meu quarto até à rua. Aliás, parece que nunca tinha saído desta cidade invisível.

Sinto que reconheço toda a gente, mas, no entanto, nem as suas caras consigo ver. Não faz falta! A solidão será a minha única companheira nesta cidade, sei-o bem. Mas não me interessa. Nem os horrores dos séculos passados conseguirão matar o lirismo dos meus sonhos.

Bem sei, minto-me em demasia.

Talvez não devesse ter saído da cama ou, talvez, nunca me deveria ter deitado nela. Não sei. Também, como já vos disse, nesta cidade já nada faz sentido.

Julgo haver um velho jardim aqui por perto. Um jardim rasgado por vários andares de linhas de eléctricos, onde a sua sombra já pouca vegetação deixa viver.

Vou até lá e, durante essa viagem, a paisagem será feita apenas de sons. Ainda não me sinto preparado para falar com nenhum transeunte.



Capítulo 4: O jardim

Como é possível? Não creio o que o mudo silêncio da minha vista me mostra. Terei voltado a adormecer de olhos abertos?

Julgo ver uma florida elevação neste jardim, que, através de um enferrujado pilar, se desloca como transeuntes numa procissão em busca daquilo que bem sabem que nunca poderão ter.

Crisântemos, lírios, diosmas, túlipas, todos fazem parte desta caminhada até a uma pequena frincha de luz entre os andares de monstruosas estruturas metálicas e por onde também corre um pequeno fio de água.

Como bem vos disse, foram muitos os anos, ou talvez séculos, que passei longe desta Cidade Invisível.

Que terá sucedido para que volte a ver cores nesta cidade? Com certeza não terá sido vontade do meu semelhante. E o Criador, esse, já há muito que jaz adormecido no seu próprio reflexo.

Não consigo entender. Terá tido, talvez, esta forma de vida não inteligente a capacidade de fazer aquilo que os transeuntes desta cidade tentam fazer desde o dia em que decidiram viver acordados de olhos bem fechados?

Terão visto estes coloridos fitomórficos algo que nos escapa há muito tempo?

Agora que o penso, nunca na minha insignificante existência tinha visto uma luz tão flórida nesta cidade.

A verdade é que nesta cidade ninguém quer receber uma luz tão verdadeira sobre a sua face, não se lhes vão abrir os olhos e adormecer no eterno horror que é viver morto de olhos bem abertos.

Calma, acho que começo a entender algo que me escapava há muito tempo. O Homem não anseia o bem nem o belo, isso fá-lo-ia sentir bem com o seu semelhante. Fá-lo-ia dar razão ao Criador. Pior ainda, fá-lo-ia ficar mais insignificante, e despertar a maior humilhação que o Homem pode sentir, que é respeitar o seu próprio semelhante.

Vou-me sentar um bocado por aqui e contemplar toda esta enigmática questão.

• • •

Não sei. Já não faz sentido ficar mais tempo neste jardim.

Ainda hoje estou a dar a minha primeira caminhada pela Cidade Invisível e já me fartei de julgar o meu semelhante. Talvez esta ânsia adormecida pelo longos anos que levei dormidos de olhos bem abertos me tenha mudado.

Prometo-o. Hoje não, mas, num dia destes dias, talvez regresse aqui e volte a minha face para aquela flórida luz.

Vou prosseguir a minha viagem. Talvez tenha caminhado muito. Vou regressar no velho eléctrico para casa e, através das suas janelas enegrecidas, vislumbrar o compungido carácter desta cidade.



Capítulo 5: O regresso a casa: final da primeira viagem

Bem, é aqui a paragem de minha casa.

Creio que esta primeira viagem pela Cidade Invisível foi suficiente para me voltar a confundir com a cidade.

Estou cansado. Vou regressar ao meu quarto.

Pelo menos, hoje vi que nesta cidade algo está a mudar. Ou talvez seja eu que estou a mudar. Ou, talvez, já não haja mais espaço no parco pensar do meu semelhante para que o negro desta cidade se torne ainda mais horrendo que o próprio coração do Homem.

Desta vez não vou abrir os olhos. Vou esperar por mais caminhadas. Vou voltar a falar com personagens anónimos.

Afinal, hoje recomeço a viver nesta cidade. Na Cidade Invisível.


Playlist:

Bohren & Der Club of Gore - Midnight Black Earth (Black Earth, 2002 - Wonder Records)
Kammerflimmer Kollektief - Nachtwacht, 15 September (Wilding, 2010 - Staubgold)
Boards of Canada - Turquoise Hexagon Sun (Music Has The Right to Children, 1998 - Matador)
Future Sound of London - Dead Skin Cells (Lifeforms, 1994 - Astralwerks)
Aphex Twin - Actium (Selected Ambient Works 85-92, 1992 - PIAS)
Cybotron - Medusa (Colossus, 1979 - INAK Records/Neutron Star)
Moskwa TV - Radio and TV (Dynamic + Discipline, 1985 - Westside Music)
Xinlisupreme - All You Need is Love Was Not True (Tomorrow Never Comes, 2002 - FatCat Records)