Programa N.º 11 [06/OUT/2010]

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Capítulo 1: A persistência da horizontalidade

Após longas horas, ainda aqui me encontro, entregue ao abandono desta silenciosa solidão.

O meu pensar imobilizou-me de novo neste quarto, nesta cama.

Já se passaram tantos dias, ou talvez séculos, desde voltei a acordar neste quarto, do qual parti em busca de algo que nem bem o seria e, no entanto, regressei ao ponto de partida.

Não sei mais o que fazer ou o que procurar. Começo a pensar que talvez seja melhor voltar a viver dormido, de olhos bem abertos.

Triste pensar, mas o incondicionalismo das minhas limitações enquanto simples transeunte não me permitem mais.

Vou voltar àquele jardim, sob as linhas do velho eléctrico. Talvez os floridos fitomorfos e forte luz que o encaminha me reactive algo que levo adormecido.



Capítulo 2: A viagem (parte 1)

A viagem faz-se longa. Coloco um pé diante do outro apenas para não me entregar de novo à imobilidade.

Sei que viajo em vão. Lá nada vai haver.

Volto a sentir a triste angústia em ter pensamentos labirínticos e espirais.

Creio ter perdido de novo a vontade de continuar na Cidade Invisível.



Capítulo 3: A viagem (parte 2)

Já cheguei ao jardim que vos falei.

Aqueles coloridos fitomorfos que visitei na minha primeira viagem estão ainda mais coloridos.

A sua caminhada em direcção à luz, embalados por um ténue fio de água, está cada vez mais próxima do final.

Não é a ausência da razão impedimento para fazer aquilo que a nossa a tanto nos obriga.

Procuram algo mais claro, mais simples, onde os tons não são mera ambivalência.

No entanto, a sua metodologia para o conseguir faz-nos tapar, a nós transeuntes, a cara de vergonha.

Talvez seja tempo de incapacitar a vontade e ceder à indiferença.



Capítulo 4: Retorno à horizontalidade

Vou colocar a minha face directamente sobre aquele raio que miraculosamente trespassa o amontoado de ferro enegrecido e ousa incidir sobre a Cidade Invisível.

A luz é demasiadamente forte. Obriga-me a fechar os olhos como há muito não os fechava.

Estranha sensação. Agora que reparo, há já muito que não fechava os olhos. Isto traz-me demasiadas recordações. É quase que regressar aos longos anos que levei dormidos de olhos bem abertos.

Mas, não pode ser. Está tudo trocado. Como posso eu viver esta desprezível recordação quando, na realidade, tenho os olhos mais fechados que nunca?

É melhor sair daqui e volta-los a abrir.

Estou algo intrigado. Parece que esta Cidade nada mais é que um volátil éter, ao qual regressei, mas que dele posso desaparecer novamente a qualquer instante.

Aqui, não há espaço para luz. Nem cores. Aqui, só o negro cáustico faz sentido. É a ele que me devo prestar.



Capítulo 5: Recomeçar

Já abandonei aquele jardim. Caminho a passos largos em direcção a casa, novamente.

Sinto uma enorme necessidade em descobrir esta paradigmática sensação que é fechar bem os olhos e sentir e sentir que estou a dormir.

Só a mais distante e mirabolante lenda seria capaz de contar semelhante hebetismo. Não conheço ou concebo a ideia de o Homem dormir de olhos fechados.

Agora que me recordo, pairam histórias por esta cidade que em tempos idos, que o virar dos milénios tenderam em ocultar, os nossos semelhantes viviam acordados de olhos bem abertos.

Triste ideia. Mas não descuro.

Vou até casa, sentar-me. Vou pensar nesta ideia, fechar bem os olhos.

Vou tentar entregar-me de novo a algo que tanto repudiei.

Sentir de novo o viver adormecido de olhos bem abertos. Mas, desta vez, acontecerá o contrário. Dormir de olhos fechados. Processo raro, mas que tanto se assoma à minha vontade e curiosidade.

Nada temo, pois, no máximo, regressarei àquele lugar onde durante vários séculos me entreguei ao negro devolutismo em tons dormentes.



Playlist:

Kammerflimmer Kollektief - In Transition (Version) [Wilding, 2010]
Sigur Rós - Hafsól [Von, 1997]
Conrad Schnitzler - Electric Garden [Con, 1978]
Vangelis - Blade Runner Blues [Blade Runner OST, 1982]
Lubomyr Melnyk - The Voice of Trees 3 [The Voice of Trees, 1985]

Programa N.º 11 [06/OUT/2010]

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Capítulo 1: A persistência da horizontalidade

Após longas horas, ainda aqui me encontro, entregue ao abandono desta silenciosa solidão.

O meu pensar imobilizou-me de novo neste quarto, nesta cama.

Já se passaram tantos dias, ou talvez séculos, desde voltei a acordar neste quarto, do qual parti em busca de algo que nem bem o seria e, no entanto, regressei ao ponto de partida.


Não sei mais o que fazer ou o que procurar. Começo a pensar que talvez seja melhor voltar a viver dormido, de olhos bem abertos.

Triste pensar, mas o incondicionalismo das minhas limitações enquanto simples transeunte não me permitem mais.

Vou voltar àquele jardim, sob as linhas do velho eléctrico. Talvez os floridos fitomorfos e forte luz que o encaminha me reactive algo que levo adormecido.



Capítulo 2: A viagem (parte 1)

A viagem faz-se longa. Coloco um pé diante do outro apenas para não me entregar de novo à imobilidade.

Sei que viajo em vão. Lá nada vai haver.

Volto a sentir a triste angústia em ter pensamentos labirínticos e espirais.

Creio ter perdido de novo a vontade de continuar na Cidade Invisível.



Capítulo 3: A viagem (parte 2)

Já cheguei ao jardim que vos falei.

Aqueles coloridos fitomorfos que visitei na minha primeira viagem estão ainda mais coloridos.

A sua caminhada em direcção à luz, embalados por um ténue fio de água, está cada vez mais próxima do final.

Não é a ausência da razão impedimento para fazer aquilo que a nossa a tanto nos obriga.

Procuram algo mais claro, mais simples, onde os tons não são mera ambivalência.

No entanto, a sua metodologia para o conseguir faz-nos tapar, a nós transeuntes, a cara de vergonha.

Talvez seja tempo de incapacitar a vontade e ceder à indiferença.



Capítulo 4: Retorno à horizontalidade

Vou colocar a minha face directamente sobre aquele raio que miraculosamente trespassa o amontoado de ferro enegrecido e ousa incidir sobre a Cidade Invisível.

A luz é demasiadamente forte. Obriga-me a fechar os olhos como há muito não os fechava.

Estranha sensação. Agora que reparo, há já muito que não fechava os olhos. Isto traz-me demasiadas recordações. É quase que regressar aos longos anos que levei dormidos de olhos bem abertos.

Mas, não pode ser. Está tudo trocado. Como posso eu viver esta desprezível recordação quando, na realidade, tenho os olhos mais fechados que nunca?

É melhor sair daqui e volta-los a abrir.

Estou algo intrigado. Parece que esta Cidade nada mais é que um volátil éter, ao qual regressei, mas que dele posso desaparecer novamente a qualquer instante.

Aqui, não há espaço para luz. Nem cores. Aqui, só o negro cáustico faz sentido. É a ele que me devo prestar.



Capítulo 5: Recomeçar

Já abandonei aquele jardim. Caminho a passos largos em direcção a casa, novamente.

Sinto uma enorme necessidade em descobrir esta paradigmática sensação que é fechar bem os olhos e sentir e sentir que estou a dormir.

Só a mais distante e mirabolante lenda seria capaz de contar semelhante hebetismo. Não conheço ou concebo a ideia de o Homem dormir de olhos fechados.

Agora que me recordo, pairam histórias por esta cidade que em tempos idos, que o virar dos milénios tenderam em ocultar, os nossos semelhantes viviam acordados de olhos bem abertos.

Triste ideia. Mas não descuro.

Vou até casa, sentar-me. Vou pensar nesta ideia, fechar bem os olhos.

Vou tentar entregar-me de novo a algo que tanto repudiei.

Sentir de novo o viver adormecido de olhos bem abertos. Mas, desta vez, acontecerá o contrário. Dormir de olhos fechados. Processo raro, mas que tanto se assoma à minha vontade e curiosidade.

Nada temo, pois, no máximo, regressarei àquele lugar onde durante vários séculos me entreguei ao negro devolutismo em tons dormentes.



Playlist:

Kammerflimmer Kollektief - In Transition (Version) [Wilding, 2010]
Sigur Rós - Hafsól [Von, 1997]
Conrad Schnitzler - Electric Garden [Con, 1978]
Vangelis - Blade Runner Blues [Blade Runner OST, 1982]
Lubomyr Melnyk - The Voice of Trees 3 [The Voice of Trees, 1985]

Programa N.º 10 [22/SET/2010]

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Capítulo 1: Do templo ao jardim

Conforme ficou prometido, parti rumo àquele jardim que vos falei.

A viagem não foi longa, mas sim particular.

Quando sai daquele templo, uma terrível ânsia em contradizer a minha vontade e dever tomou conta de mim.

Estou farto de caminhar em busca de algo e nunca o encontrar. Triste desígnio, cuja fatalidade do destino o encaminha sempre para o vazio.

Mas já é tarde para estes desvios no pensar. Foram muitos os tempos e sítios diferentes que me colocaram nesta senda de um vácuo futuro.

Mas porque me questiono eu em demasia? Até parece que voltar a dormir de olhos bem abertos me conduziu a algo maior.

O jardim já está perto, é para lá que me encaminho.



Capítulo 2: O jardim (sul)

Já estou muito próximo do jardim.

Mas, o que avisto ao longe, como era já expectável, são sombras de um passado de verdejantes fitomorfos.

Na Cidade Invisível um jardim nada mais é que um negativo de extintos espaços floridos, hoje apenas reconhecidos por se tratarem de vãos entre monumentais estruturas verticais, ladeados pelo desprezo humano.

O único de original que ali espero encontrar, é uma enorme pedra, cujo medo e estupidificação do Homem transformou em algo sagrado, adornada de mirabolantes e patéticas histórias, em tons de anjos e renascimentos da há já muito adormecida Providência.

O certo é que nem sei o que vim aqui fazer. Agora que cheguei, sinto o meu pensar questionar a minha vontade com o tom mais jocoso que possais imaginar.

Este era um local que visitava regularmente há muitos anos, ou talvez séculos, em ingénua idade, acompanhado por alguns semelhantes. Infindos dias aqueles.

Não vim aqui procurar a adormecida Providência, vim sim em busca de um local onde, em tempos, a minha parca existência se resumia à triste ideia de acreditar no amanhã.

Vou partir. Sem propósito. Vou deambular pelas rua da Cidade Invisível.



Capítulo 3: As rua da Cidade Invisível (parte 1)

Já há muito que não deambulava pelas ruas da Cidade Invisível.

Este negro frio, a velocidade a que se deslocam os transeuntes, as ruas e becos amontoados de abandono…

O devolutismo cresce como uma hera pelos edifícios, deixando os andares mais baixos entregues ao abandono ou, por vezes, entregues a tristes semelhantes, que nada mais têm que a ânsia do final do seu ciclo.

Não há vozes, não ha diálogos. Só se ouvem os ruídos do movimentar citadino.

Ao fundo, uma luz ténue transborda por um enorme vidro. Lá dentro, alguns semelhantes fazem companhia a um balcão, onde o álcool lhes assegura uma vida de olhos bem fechados.

Não quero entrar, vou continuar a minha caminhada.



Capítulo 4: As rua da Cidade Invisível (parte 2)

Já estou farto de caminhar.

Não há nada nesta cidade que revisitar. Caminho, caminho. Olho em volta e parece que estou sempre no mesmo local.

O ritmo a que a paisagem urbana me aparece diante dos olhos é quase perpétuo.

Parece que me encontro numa espiral de abandono e esquecimento, da qual, em virtude das monumentais construções, jamais conseguirei sair.

Não sei mais onde procurar a adormecida Providência.

É hora de regressar a casa.



Capítulo 5: As rua da Cidade Invisível (parte 3)

Paro diante do meu prédio.

Olho para cima e penso: porque regresso sempre a este sítio do qual parto em busca de um outro desígnio?

Foi aqui que me entreguei à triste realidade que é dormir de olhos bem abertos.

Certo é que hoje só revisitei locais que a minha memória guarda como longínquas paisagens desprovidas de qualquer negro e desilusão.

Tenho de repensar todo o meu desígnio, todos os passos dados neste flutuante vácuo.

Vou subir, regressar ao meu quarto.

Talvez me volte a deitar, não sei.

Cada vez mais, sinto que nada vale a pena na Cidade Invisível.



Playlist:

John Cale & Terry Riley - Church of Anthrax [Church of Anthrax, 1970]
Tony Conrad - Heterophony Of The Avenging Democrats (excerto) [Slapping Pythagoras, 1995]
Yahowa 13 - Journey Thru An Elemental Kingdom [Penetration: An Aquarian Symphony, 1974]
Ash Ra Temple - Darkness: Flowers Must Die [Schwingungen, 1972]
Eno Moebius Roedelius - Oil [After The Heat, 1978]
Glenn Branca - The Ascension (excerto) [The Ascension, 1981]

Programa N.º 9 [15/SET/2010]

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Capítulo 1: O Templo

Conforme ficou prometido, ainda aqui estou, sentado em frente a este smi-devoluto edifício.

Nem o negro e solitário frio do passar das horas nesta Cidade me fez abandonar esta praça central, onde a eterna pendular movimentação de transeuntes, cuja imobilidade lhes faria pensar no que fazer, é de tal modo frenética que seria capaz de cansar o mais ávido dos atletas.


O certo é que ainda ninguém abriu a porta, nem se escutou o mais pequeno ruído do interior, a não ser um quase perpétuo gotear, que ressoa em toda a sala, dando origem a um solitária e longínqua paisagem.

Vou continuar à espera que alguém me abra esta porta.

Vou continuar no coração da Cidade Invisível.



Capítulo 2: A porta do templo

Parece que escuto passos no interior.

Alguém caminha de forma sincopada com o gotear que lá dentro também de faz ouvir.

Mas são só passos. Não escuto qualquer voz. Caminha longe. Passos delicados.

Para e volta a caminhar, de forma não ritmada. Como que se estivesse a cuidar de algo.

O ferrolho desta porta é tão pequeno que apenas consigo ver claridade e através dele, um ar fresco, arrepia-me a retina.

Vou bater à porta!

Nada! Ninguém me responde. Mas, desta vez, oiço passos em direcção à porta.

Um ruído fez-se ouvir do outro lado. Como que se a porta tivesse sido destrancada.

Confirma-se. A porta foi mesmo aberta.

Vou entrar e já vos conto o que há dentro deste edifício.



Capítulo 3: Dentro do templo

Já estou dentro do templo.

O espaço encontra-se completamente abandonado. Os bancos desfeitos, desorganizados. Há vidros partidos por todo o lado.

Poças de água, correntes de ar. O espaço está frescamente entregue ao devolutismo.

O chão e paredes, em claros tons de cinzento, por estranho que pareça, não apresentam quaisquer vestígios de pegadas.

O telhado, esse, há já muito tempo que deixa entrar água e toda a espécie de porcaria que flutua pelo triste éter da Cidade Invisível.

Mais ao fundo, existe uma porta, smi-aberta. Com certeza dá acesso a outra sala mais pequena.

Junto a essa porta, existem alguns verdes fitomórfos, cuidadosamente tratados.

Vou entrar, talvez lá encontre a pessoa que me deixou visitar o interior de este edifício.



Capítulo 4: A sala do templo

Já há algum tempo que estou dentro da divisão que vos falei.

Ao contrário da ala principal do templo, esta pequena sala é escura. O ar é pesado. Apenas um vela ilumina o espaço. Também não seria necessário nada mais forte, dada a sua exiguidade.

Pequenos utensílios estão espalhados por uma mesa, bem como alguns livros.

Uma cama, de estrutura em ferro, completa o mobiliário deste modeste espaço.

Vê-se que nela dorme regularmente alguém.

É um espaço onde a simplicidade e a austeridade se impõe.

Quem habitará este espaço? E porque se respira semelhante nauseabundo cheiro cá dentro?

Será este o sítio onde jaz adormecida a Providência? Não pode ser. Triste paródia se assim o fosse.

Agora que reparo melhor, sobre a mesa está um papel com algo escrito, com uma caligrafia muito hesitante.

Podem-se ler as seguintes palavras: Aqui já nada existe. A ânsia pelo que bem sabemos que não existe já não faz sentido. A Providência jaz onde, em tempos idos, foi acordada.

Esse local só pode ser junto de um jardim no Sul da Cidade, onde existe uma pedra, que com o passar dos milénios se foi associando ao local onde a adormecida Providência renasceu e nos condenou ao eterno terror de viver acordados de olhos bem fechados.

É para lá que vou.

É o meu novo destino n’A Cidade Invisível.


Playlist:

Harmonia - Walky-Talky [Deluxe, 1975]
Hans-Joachim Roedelius - Durch Die Wüste [Durch die Wüste, 1978]
Cluster & Eno - One [Cluster & Eno, 1977]
Manuel Gottsching - Quiet Nervousness [E2-E4, 1984]
Kraftwerk - Autobahn (excerto) [Autobahn, 1974]
La Düsseldorf - Rheinita [Viva, 1978]

Programa N.º 8 [08/SET/2010]

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Capítulo 1: O Regresso (parte 2)

Após aquele contacto com a prometida semelhante, aqui estou, no nada. Rumo ao coração daquela cidade da qual parti em busca de um outro desígnio que não este falsídico tormento do acreditar no amanhã.

Sinto-me perdido. Para vos falar verdade, não sei bem se é este o caminho de regresso. Aqui não há nascente nem poente. Aqui os ciclos já não existem. Rumo apenas seguindo um instinto que nada mais é que a vontade da movimentação.

Olho em volta e só vejo linhas do horizonte.

Não me interessa, sei bem qual o meu objectivo. Nem que sejam precisos vários séculos para o conseguir, mas hei-de regressar à Cidade Invisível.



Capítulo 2: O regresso (parte 3)

Sinto uma fresca brisa a trespassar-me a alma.

Este arrepio é-me de todo familiar. Só podem ser os negros ventos vindos da Cidade Invisível.

Ter-me-á a minha discursiva orientação encaminhado na direcção certa?

Agora que o penso, já nem me lembro da viagem até aqui. Só existe o branco vácuo residual no meu pensar e este monumental cansaço que se apodera das minhas pernas.

Não consigo precisar as horas, ou talvez séculos, que me levaram a percorrer esta senda do parco destino. Ou obrigação. Nem sei bem como lhe chamar.

Certo é que nem o forte brilho das longínquas mas sempre presentes companheiras estrelas me ilumina esta forte incerteza do que virá depois de chegar À Cidade Invisível.

Não é tempo para pensar nisso, o meu destino já está próximo.



Capítulo 3: O regresso à Cidade Invisível

O forte odor híbrido de óleo de motor e matéria orgânica putrefacta torna-se já demasiadamente presente.

O negro, os amontoados de betão e ferro retorcido. A total ausência do verde e da luz. A verticalidade em determínio do livre pensar.

Que nojo, que ódio. Como posso eu chamar a este sítio lar?

Como posso eu ansear tanto regressar aqui?

Mais, como posso eu ter como desígnio a entrega ao devolutismo moral de esta Cidade?

Não entendo como é aqui que me sinto bem. Afinal, sou mais um anónimo transeunte que se junta e se confunde com todo este triste espectáculo que é a básica essência da condição humana.

Estou de regresso à Cidade Invisível.



Capítulo 4: A Cidade Invisível

Mas, que estranha sensação. Acabei de dar o primeiro passo no coração da cidade e tudo parece ter mudado.

Um silêncio mudo tomou conta da cidade. Tudo parece fazer mais sentido.

Do mais leve pormenor à mais simples acção quotidiana são capazes de despertar em mim o mais delicado e delicioso fascínio.

A monumental verticalidade arquitectónica imposta pelo meu semelhante parece-me agora algo que transcende não só as impossibilidades físicas do Homem mas também algo metafísico.

A busca da elevação já não é a separação imposta pelo nojo ao semelhante, mas sim a procura de algo que nos escapa há demasiados milénios.

O ritmo a que a vida corre já não é rápido, mas sim impaciente.

Afinal, todos corremos em busca de algo que não queremos perder. Mesmo sem o sabendo ou nem sonhando no propósito.

A Cidade Invisível parece ter outro sentido. Parece-me mais simples e os anónimos transeuntes, esses... Nem sei. Talvez o medo seja mais forte que a vontade.

Acho que começo a entender o por quê daquela estranha semelhante me ter dito para regressar à Cidade Invisível.



Capítulo 5: O quarto

Aos poucos, começo-me a a readaptar a este espaço.

Estou junto ao meu quarto. Vou subir. Toda esta viagem deixou-me exausto.

Não sei bem para onde ir nem o que fazer.

Recordo as palavras daquela estranha semelhante, que me disse que respirávamos a violação do dever pelos poros. Que fosse ao encontro da adormecida Providência.

Nem sei bem o que pensar disto. Só posso concluir que é aqui o sítio onde resta o meu dever.

Sinto-me algo confuso. Vou subir até ao meu quarto e de lá, daquela pequena janela, contemplar os anónimos transeuntes.

Vou pensar o meu próximo passo.



Capítulo 6: A busca da Providência adormecida (parte 1)

A movimentação lá em baixo assume-se freneticamente delicada. Tomara eu imprimir aquele ritmo ao meu pensar.

Não sei onde procurar a adormecida Providência. Talvez se encontre no mais inexpectável lugar. Talvez onde a fluxo de anónimos transeuntes é maior.

Não sei. O certo é que jaz adormecida há demasiados milénios. Já nada faz sentido. Nada seria capaz de a fazer acordar e voltar a enojar os meus semelhantes com promessas de um futuro vacuamente flutuante.

Já sei. Vou até ao epicentro destes movimentos pendulares. Ao local onde todos passam e ninguém para. Ao local, onde em tempos idos, aquele amontoado de pedras se dignava a ser o templo da Cidade Invisível.



Capítulo 7: A busca da Providência adormecida (parte 2)

Como seria de esperar, o templo encontra-se fechado e completamente abandonado.

Do seu telhado, negros fios de lodo escorrem em direcção ao chão. As janelas estão todas estilhaçadas.

É um edifício deitado ao abandono, embora não esteja em ruína.

Não sei como fazer para entrar. As janelas erguem-se a vários metros do meu alcance. A porta, essa, parece ser inexpugnável.

Alguém deve ter acesso ao edifício. Não sei é a quem perguntar.

Agora que reparo, a fechadura da porta parece ter sido utilizada recentemente.

Talvez alguém ainda venha cá. Vou esperar.

Neste momento, nada mais tenho para fazer ou expectar.

Só o encontro com o meu objectivo faz sentido.

Nem que o virar dos dias me torne pó, vou ficar aqui sentado à espera que esta porta seja aberta.


Playlist:

Deep Space Network - Doors of Perception [Big Rooms, 1993]
Lexaunculp - Has Been Trying not to Wonder [The Blurring of Trees, 2003]
Techno Animal - Hypertension [The Brotherhood of the Bomb, 2001]
Harold Budd & Brian Eno - Late October [The Pearl, 1980]
Gescom - Sciew Spoc [Gescom EP, 1994]
Soul Oddity - Cruxx [Tone Capsule, 1996]
Phoenecia - Melfad [Brownout, 2001]
Jega - Geometry [Geometry, 2000]

Programa N.º 7 [01/SET/2010]

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Capítulo 1: A Sala (final)

Durante todo este tempo, permaneci aqui, entregue ao smi-abandono. A única companhia é a minha ilusão de trocar uma palavra com esta estranha semelhante.

Dei milhares e milhares de voltas a esta sala. Não há mais nada para além daquilo que vos descrevi. No entanto, durante estas últimas horas, algo de estranho se passou aqui.

Por uma pequeníssima frincha, imperceptível à vista mais desatenta, entrou um forte raio de sol. Incidiu rigorosamente no meio deste espaço. Foi o suficiente para iluminar toda a sala ou, pelo menos, para me encolher as retinas até ao mais microscópico tamanho.

Com este estranho incidente, foi possível descobrir mais pormenores nestas paredes. Junto às arestas que formam o tecto, cresce um delicado fitomorfo, de pujantes tons esverdeados, peregrinando em direcção àquela pequena frincha.

Foi-me possível ver, também, que nos quatro cantos da sala corre um ténue fio de água, que recolhe sob o soalho, impossibilitando-me saber qual o seu destino.

Estou perante um espectáculo em tudo semelhante ao que vi na minha primeira caminhada pela Cidade Invisível.

O certo é que lá fora, os meus olhos vislumbraram os mais verdejantes prazeres.

Com bem sabeis, a vegetação, neste vácuo e flutuante vazio, ao que ignóbeis e idos semelhantes chamaram de Cidade Invisível, torna-se mais rara que os motivos para viver de olhos bem fechados.

Não sei que espaço será este. Também não sei porque não lhe consigo ver o rosto àquela semelhante que me fez viajar para tão longe daquele quarto.

É a hora! Vou falar com ela. Nem que as impossibilidades da minha condição humana sejam entregues em forma de triste esgar às mãos do Criador.




Capítulo 2: O diálogo

Estou em frente à estranha semelhante.

Como seria expectável, não lhe consigo ver o rosto. No entanto, julgo ter nova estratégia. Vou-lhe tocar.

Mas, que estranha sensação. O corpo parece ser feito de gelo. No entanto, parece humano ao tacto. Do interior dos seus longos cabelos negros, sai também um frio insuportável. Ela continua a tocar o seu piano, como se nada do que fizesse lhe importasse.

Entretanto, voltei a tocar-lhe, desta vez no braço. Aliás, agarrei-lhe o braço, de modo a impossibilitar-lhe o que está a fazer.

Calma, parou de tocar.

Uma forte brisa gelada fez-se sentir em toda a sala. Um sensação de pânico tomou conta de mim. A estranha semelhante estava a voltar o seu rosto para o meu. Não sei se o está a fazer muito lentamente. Mas, a mim, este momento parece-me interminável. Espero por ele há demasiado tempo.

Mas… Que espanto! Já vejo o seu rosto. É de uma delicadeza tal que faz parecer a pena da mais pequena e exótica ave pesada. Os seus olhos, negros como o próprio coração do Homem, transmitem-me uma tristeza tal que nem o maior dilúvio em forma de lágrimas seria capaz de apaziguar este desolação que tomou conta de mim.

Sinto-me encandeado, desorientado. Não sei que fazer nem como me comportar.

Entretanto, esta estranha semelhante, segurou-me na mão e disse: “Respiramos a violação do dever pelos poros. Regressa onde jaz a Providência adormecida”.

E num piscar de olhos, desaparece. A sala tornou-se negra, o espectáculo que antes vos descrevi lá fora, deve-se estar a repetir. Talvez, mais um ciclo termina ou começa e uma verdade foi conhecida.

A triste e adormecida Providência só pode repousar no coração da Cidade. É para que lá devo ir.

Está na hora de regressar à Cidade Invisível.




Capítulo 3: O regresso à Cidade Invisível

Já me fiz ao caminho de regresso à Cidade Invisível.

As longas cortinas de areia, distorcidas pelo extremo calor que se faz sentir, fazem deste trajecto todo um calvário.

Mas nada me interessa. Caminho com um destino, com uma verdade conhecida.

Agora que o penso, acarretei a ordem daquela semelhante, mas, na realidade, nem a questionei. Nem a pensei. Ajo quase que por amor cego, mais digno de um adolescente que acaba de descobrir os voluptuosos prazeres carnais.

Certo é que acabei também de experimentar algo pela primeira vez que há muito asneava: um semelhante imune aos tristes espectáculos da parca condição humana, que foge daquela cidade e que já nada se importa com o amanhã.

Não sei quem me poderia dar conselhos mais sábios!

Entretanto, o ritmo e a vontade a que viajo são já demasiadamente marcados. Não há regresso. Já não há espaço para incertezas.

Não vos consigo dizer para onde vou ao certo. Mas, na realidade, nunca na minha vida tive tantas certezas do que estou a fazer.

O meu objectivo? O coração da Cidade Invisível.


Playlist:

Tony Conrad with Faust - From the Side of the Machine [Outside the Dream Syndicate, 1973 - Table of the Elements]
Cabaret Voltaire - A Thusand Ways [Red Meca, 1981 - Mute]
Muslimgauze - Muslims die India [Mullah Said, 1998 - Staalplaat]
Harry Partch - Exordium: The Beginning Of A Web [Desilution of the Fury, 1999 - Innova]

Programa n.º 6 [25/AGO/2010]

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Capítulo 1: A Sala (Parte 1)


Conforme vos prometi, ainda aqui estou neste enorme vazio em forma de sala.

Já muito tentei falar com esta estranha e especial semelhante. Mas, na realidade, ainda nem o seu rosto consegui ver.

Aliás, durante este tempo todo de silêncios, estive a observar este estranho espaço.

Quanto mais tempo passo aqui dentro, ao contrário do que seria expectável, a sala parece-me maior, mais quente, apesar da sua extrema simplicidade e austeridade.

Acho que me vou levantar e observar mais de perto aquela moldura despida que vos falei e já vos contarei mais pormenores.



Capítulo 2: A Sala (Parte 2)


Depois de bem observada aquela moldura, descobri algo que me tinha escapado. Não está despida. Ostenta sim um grande espelho. A mimetização das paredes desta sala assim me induziu a vista em erro.

Mas não é um espelho vulgar, estanhífero, é feito de uma pedra polida, que julgo ser obsidiana, produzido com a mesma perfeição que o resto da sala.

Porque será um espelho o único objecto deste espaço quando, na realidade, a estranha semelhante que o habita não me dá o privilégio de ver as suas faces?

Vou continuar a procurar mais pormenores por esta sala.



Capítulo 3: A Sala (Parte 3)


Após uma grande e pormenorizada busca pela sala, encontrei mais um estranho pormenor.

Uma pequena caixa, feita em ferro enegrecido, junto a canto, semiaberta, da qual se escutavam vários ruídos ritmados, mas não sincronizados, chamou a minha atenção.

Estava cheia de relógios. Mas, na realidade, nenhum deles partilhava hora, nem minuto, nem segundo. Estava cada qual por si.

Que quererá isto dizer? Uma semelhante que vive num local onde um desvio de poucos milímetros seria capaz de desorientar o mais desleixado transeunte, e que vai até ao coração da Cidade Invisível afrontar tristes almas de relógio em punho, não consegue ter os relógios todos certos?

Já são muitas a perguntas para lhe fazer, vou tentar, mais uma vez, falar com ela.



Capítulo 4: A Sala (Parte 4)


Já estou de novo sentado junto desta estranha semelhante. Digo semelhante, mas, cada vez mais, as semelhanças connosco, anónimos e insignificantes transeuntes, são menos.

Continuo sem lhe ver o rosto. Ela não fala comigo. Mas porque será? Não sei mais o que fazer. Resta-me sentar aqui e continuar a esperar. Talvez me esteja a testar, não sei.

Certo é que não vou desistir, vou continuar à espera...


Playlist:

Soft Machine - Facelift [Third, 1970 - CSB]
Tangerine Dream - Madrigal Meridian [Cyclone, 1978 - Griffin]
Pink Floyd - The Narrow Way (Pt. 1-3) [Ummagumma, 1969 - Capitol]
Eloy - Decay of Logos [Ocean, 1977 - EMI]

Programa n.º 5 [18/AGO/2010]

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Capítulo 1: Cruzamentos

Como vos prometi na última viagem, comecei a caminhar por este colossal labirinto, o qual me está a impossibilitar o contacto com aquela semelhante, está-me a cansar ou, talvez, a testar.

Desde a última vez que partilhei o meu pensar convosco, não parei de caminhar, de tentar encontrar o epicentro desde pecado em forma de imponentes arbustos verdes. Mas, por muito mais que o tente, não o dou conseguido. Julgo repetir sítios com maior frequência que o meu semelhante erra.

O cansaço é tanto que o desfalecimento já se ritmou de forma sincopada com a ânsia de continuar. Não há tempo nem espaço para estes caprichos físicos impostos pelo Criador.

Mas porque será esta senda do metafísico carnal tão complicada?

Não posso desistir, vou continuar a procurar o final deste labirinto.


Capítulo 2: Diagonais

Não posso mais. O cansaço é já tanto que me sinto capaz da mais cobarde rendição, que é abrir os olhos e deixar este mundo de falsificas expectativas sonhadoras.

Já estou farto disto! Não tenho porque me sujeitar ao caprichos da terrível e adormecida Providência, que há já muito que jaz no seu próprio reflexo.

Vou começar a desbravar estas clasutrofóbicas muralhas de vida inanimada. Vou directo ao que busco. Sempre em frente. É hora de me libertar das nauseabundas leis do Criador!


Capítulo 3: O reduto final

Mas, que é isto? Que impenetrável fortaleza de metal é esta? Não vejo janelas, não vejo portas. Aliás, não vejo qualquer tipo de vão que comunique com o exterior.

Poderosos e ensurdecedores ruídos provêem do interior. Como que um colossal lamúriro emitido do núcleo do planeta em forma de uma monumental sofridão.

Que se passará lá dentro? Ou melhor, será isto a cobertura de algo ou será isto algo por si mesmo. Nunca na minha parca vida os meus olhos me mostraram algo semelhante.

Oiço torções, como que um esmigalhar de putrefactos ossos humanos. Como que uma queda para um abismo que nem o virar dos milénios conhecerá o seu fim.

Melhor ainda, parece que aqui tudo nasce. Aliás, parece que tudo morre. Não sei. Se calhar é esta a fábrica de todo este tormento ao que o Criador nos condenou.

Sinto uma força mais forte que a vontade em saber o que acontece dentro deste volume metálico.

Ventos ciclónicos estilhaçam sonhos perdidos e vontades idas. Um negro mais horrendo que o próprio coração do Homem ofusca qualquer luz de insignificantes esperanças. A erva deste chão ondula de tal modo que nem a mais tenebrosa noite em alto-mar seria capaz de o intimidar.

Tento tocar neste volume mas não consigo. Um estranha e incerta sensação de frio glaciar e quente do deserto invade o meu corpo.

Mas vou resistir. Sei que lá dentro estará o desígnio desta fuga do coração da Cidade Invisível.

Tenho de resistir. Já cheguei longe de mais.



Capítulo 4: Mundo em transição

Calma, este caos todo que abraçava esta enorme estrutura metálica está a terminar.

Um fresca brisa vai ocupando o seu lugar. Um forte luz faz renascer o sítio. As tormentosas sonoridade são gradualmente substituídas por delicadas melodias.

Ouve-se um piano desafinado no seu interior. Mas tocado com inigualável delicadeza e bom gosto que transforma o errante martelar nas cordas tão perfeito e harmonioso como a mais correcta frequência.

Quem o tocará?

Com toda esta luz, consigo já distinguir por entre o amontoado de ferro uma pequena porta. Vou entrar!

Mas que vejo? Não há nada aqui dentro para além de um longo pavimento em virgem lajes de mármore branco. As paredes, prolongam-se na mais perfeita simetria, criando um vão cúbico onde o mais pequeno traço feito sem régua seria capaz de fazer vomitar o mais assimétrico dos meus semelhantes.

Numa das paredes existe uma moldura num material que não consigo distinguir, mas que julgo ser uma madeira exótica, proveniente do mais longínquo espaço extra-cidade, vazia. Algo falta ali ou, se calhar, a mim é que me falta algo para a conceber assim despida.

Mas o que realmente importa destacar nesta sala está junto a um canto, implantado de forma despropositada.

Um piano de longa cauda, negro como o espectáculo que há pouco vos descrevi lá fora, tocado de forma ininterrupta por uma semelhante, sentada com a maior austeridade, com os seus longos cabelos negros, concentrada no seu tocar e completamente indiferente à minha presença.

Mas, mais uma vez, não lhe consigo ver o rosto. Não interessa. Consigo reconhece-la. É a portadora do relógio que vi semimorta junto àquele rio numa das minhas anteriores viagens.

Quem será? Porque vive neste sítio? Mais, que sítio é este?

Por hoje estou exausto de emoções. Vou-me sentar aqui, a escutar as suas perpétuas melodias, sonhos voláteis.

Sinto um conforto quase ventral. Quase que regresso ao estado embrionário. Juro-vos, por estes olhos bem fechados, que prolongaria este momento até à eternidade.

Vou ficar aqui sentado...

Playlist:

Four Tet - Love Cry [There is Love in You, 2010 - Domino]
Einstürzende Neubauten - Fiat Lux- A) Fiat Lux B) Maifestspiele C) Hirnlego [Haus der Lüege, 1989 - Potomak]
Einstürzende Neubauten - Das Schaben (excerto) [Halber Mensch, 1985 - Potomak]
LaMote Young - Well Tunned Piano, Pt. 1 (excerto) [Well Tunned Piano 81 X 25, 1988 - Gramavision Records]

Programa n.º 4 [11/AGO/2010]

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Capítulo 1: Silêncios Mudos

Fechem os olhos e sejam novamente bem-vindos à Cidade Invisível.

É uma cidade, onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos.

Acabei de me levantar neste imenso deserto, onde a deslocação do mais pequeno grão de areia seria capaz de aziumar a mais triste alma que paira neste éter inútil.

Parti em busca de uma forma de vida digna de substituir a minha eterna companheira, também chamada de solidão.

O certo é que estou perdido. Não sei que direcção tomar. Aqui não se ruma a Norte, nem a Nascente. A confusão deste vácuo espaço, onde a certeza do amanhã é coisa para sonhadores, todas as direcções confluem no triste desígnio do nada.

Mas vou começar a caminhar. Caminhar sem destino mas com propósito.

É hora de começar a minha viagem pela Cidade Invisível.



Capítulo 2: Vozes do Silêncio

Já estou farto de caminhar e não vejo nada.

São silêncios atrás de silêncios. Mudas linhas de horizonte. Mesmo que quisesse regressar à Cidade Invisível, seria incapaz de o fazer.

Não o digo por falta de vontade, mas sim porque já lhe perdi a conta aos passos errantes que dei desde que saí do velho eléctrico.

Calma, acho que oiço vozes no infinito sombrio que emana este deserto. Vou caminhar atrás delas.



Capítulo 3: Vozes do Silêncio

Já consigo avistar algo por entre as monumentais cortinas de pó. Parece-me algo com mais cor. Talvez verde. Vou-me aproximar.

À medida que me aproximo, tudo se torna mais calmo. O vento já não me faz companhia. Uma rasteira vegetação começa a preencher o piso por onde me desloco.

Ao fundo, erguem-se enormes paredes de arbustos. Ouvem-se quentes sons por detrás destes aglomerados de verde. Uma enorme sensação entre a calma e a extrema ânsia toma conta de mim.

O que será este estranho lugar? Vou-me aproximar.

Tudo em volta parece capaz de intimidar o maior perfeccionista. A simetria, aqui, engole por completo o acaso. As longas e apolíneas melodias tomam conta de todo o espaço. O tempo, que já nada importa, parece deslocar-se a uma velocidade capaz de entediar a longa persistência do Criador.

Claramente, este sítio em nada pertence à Cidade Invisível que deixei para trás.

Vou entrar. Mas antes, sentar-me-ei aqui uns minutos. Já há muito que não sentia um lugar assim.



Capítulo 4: Labirinto Espiral

Já transpus aqueles monumentais arbustos. Mas, para minha grande surpresa, o epicentro destes deleites melodiosos e paisagens mornas, está muito para lá desta primeira linha verde.

Agora que reparo bem, acabei de entrar num enorme labirinto. Será este emaranhado de caminhos confusos a muralha que protege aquilo que tanto procuro?

Será este a lar daquele misteriosa semelhante atrás da qual parti sem destino?

Vou começar a minha caminhada. Pode que me demore alguns por-de-sóis. Ou talvez vários séculos.

Mas não importa. Sinto que o que procuro estará para além destas muralhas de arbustos.

Afinal de contas, já há muito que parti daquela cidade, na qual, por força da triste ambiência de ignóbeis semelhante que acreditam no amanhã, me vi obrigado a partir.


Playlist

Thomas Neuhaus - The Bad Boys Were Prodding the Bear Through the Bars of the Cage (Ex Machina. Vol. 5, 2001 - Cybele)
Karlheinz Strockhausen - Klavierstücke XII (Klavierstücke XII-XIV, 1983 - Deutsche Grammophon)
Mile Davis - All Blues (Kind of Blue, 1959 - Columbia)
Terry Riley - A Rainbow in Curved Air (A Rainbow in Curved Air, 1969 - Columbia Masterworks)
Vómito Negro - Running Out Of Time (13 Incisões, 1989 - Facadas na Noite)

Programa n.º 3 [04/AGO/2010]

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Capítulo 1: A smi-horizontalidade

Fechem os olhos e sejam novamente bem-vindos à Cidade Invisível.

São rua e becos, amontoados de abandono, percorridas por personagens anónimos.

Como ficou prometido na última vez, não regressei a casa. Fiquei aqui, no mesmo exacto sítio de onde parti em busca de algo que me fizesse esquecer isto que agora tanto anseio.

Foram dezenas de horas junto desta fresca brisa, junto de milhares e milhares de odores putrefactos diferentes, que nada mais são que o reflexo do egoísmo do homem.

Passaram por mim dezenas de anónimos transeuntes. Alguns sozinhos, outros acompanhados pela solidão.

Não há tempo para perder com palavras e gestos simples, mas também não há espaço para o despotismo egoísta que por vezes se nos apresenta no pensar como falsídica esperança de acreditar no amanhã.

Gostava de conhecer alguém nesta cidade que se tivesse reduzido à sua inegável insignificância de tal modo que já tivesse o pensar livre. Tão livre que o tornasse já capaz de pensar em algo diferente, algo que, mais século, menos século, se torne obsoleto e patético.

Mas, onde procurar um semelhante assim nesta cidade?

Talvez nos arredores, longe do negro epicentro criacionista que estes ignóbeis semelhante criaram e no qual se refugiam, pensando que a adormecida Providência, num acto de extremo gozo, os tenha tido como protegidos.

Bem, está na hora. Vou começar a minha viagem de hoje por esta Cidade Invisível.




Capítulo 2: A viagem

Já estou farto de caminhar. Acho que vou apanhar o velho eléctrico.

Adoro o facto de olhar pela janela e conseguir ver, num espaço de tempo tão reduzido, uma quantidade tão grande de simples transeuntes, de realidades e adiamentos, mas, essencialmente, gosto do simples facto de ver o mundo a uma velocidade que o Criador nunca pensou que insignificantes criaturas do belo o conseguissem fazer.

Gosto de desafiar os limites impostos pela adormecida Providência.

Bem, vou entrar no velho eléctrico e, sentado nos seus austeros bancos de madeira, contemplar toda esta viagem do centro da cidade até aos seus arredores.



Capítulo 3: Os arredores da Cidade Invisível

Já se ouvem os fortes ventos vindos dos longínquos e solitários arrabaldes da Cidade Invisível.

Aqui, marginais transeuntes, entregaram-se há muito ao pérfido abraço infinito e vazio de quem já nem no dia de hoje acredita.

Estou tão longe do negro coração desta cidade que até já consigo ver a eterna claridade do vazio flutuante, onde nunca nada fez sentido.

É um sítio tão distante daquele quarto onde me entreguei à triste ideia de dormir de olhos bem abertos que quase parece que se passaram vários séculos desde que comecei a caminhada de hoje.

O certo é que, por muito que prolongue a minha vista até às linhas do horizonte, não consigo ver ninguém.

Será que toda a gente fugiu para o centro da Cidade Invisível?

Não pode ser. Tem de haver por aqui alguém.

Talvez este forte vento soprado do profundo desconhecido distorça a luz que oscila na linha do horizonte. Talvez eu não esteja a procurar bem.

Impossível será que todos os meus semelhantes caíram na estupidificação do acreditar no amanhã.

Vou-me sentar por aqui e esperar tanto quanto seja preciso até que encontre algum semelhante.




Capítulo 4: Vultos disformes

Já levo aqui tanto tempo e ainda não encontrei ninguém. Se calhar, por muito que me custe a crer, o meu maior receio concretizou-se: todas as tristes almas solitárias viraram espíritos sonhadores.

Não pode o meu semelhante ter caído em semelhante artimanha do Criador.

Serei eu o único nesta Cidade Invisível a ter voltado a viver de olhos bem fechados após vários séculos dormidos de olhos abertos?

Isso fazer-me-ia o personagem anónimo mais importante desta cidade.

Não pode ser! O Criador, com certeza, não viu em mim um filho aqui tornado para se entregar ao irreversível nojo que é pensar ser melhor que todos os outros.

Vou continuar à espera. Nem que o virar dos milénios me torne pó me mexerei daqui enquanto não vir alguém por estes lados, alguém que já não partilhe o triste sentimento de acreditar no amanhã.



Capítulo 5: Vultos disformes 2

O vento torna-se cada vez mais forte e sol fica mais desbotado que nunca.

Talvez o mudo silêncio que emana esta triste paisagem tenha consumido todos aqueles que aqui vieram procurar a mais infinda pretensão do Homem, que é o já nada importar e a vácua solidão tornar-se a sua melhor amiga.

Mas não vou desistir de esperar. O Criador não me levará a abandonar esta cidade de novo.

Entretanto a noite já caiu. Nada me importa. Já me prometi com a eternidade que esperaria aqui por um reflexo do meu pensar em forma de gente.

Vou continuar a esperar, vou continuar a esperar.



Capítulo 6: Companheiro de viagem?

Calma. O que vem a ser aquele vulto que se aproxima de mim mais rápido que o próprio vento seco das profundidade do desconhecido?

Julgo ser um semelhante. Mas um semelhante que vem para além dos arrabaldes da Cidade Invisível.

Não conheço ninguém que se tenha perdido para além deste pérfido e terrível aglomerado urbano.

A julgar pela firmeza dos seus passos, julgo que este lugar lhe será uma constante.

Aproxima-se cada vez mais. Já quase o consigo ver.

Mas, como pode ser? Uma mulher, de longos cabelos negros, que agora já está verticalmente imposta diante dos meus olhos, pára com um extremo silêncio e, novamente, não lhe consigo ver o rosto, por muito mais que o tente.

Será esta a semelhante que vi junto da multidão de relógio em mão? Só pode ser ela. Mas como é que não lhe consigo ver as faces?

Entretanto, já falei com ela, mas não obtive qualquer tipo de resposta.

Será mais um obstáculo do criador para que volte a acreditar no amanhã? Não entendo.

Entretanto, essa misteriosa figura já partiu. Mesmo antes que conseguisse esboçar o mais pequeno diálogo. Quem será? E porque me persegue? Será uma alma de tal modo evoluída que já nem o diálogo ou o rosto que a distingue de todos os anónimos transeuntes são importantes para ela?

Acho que já não faz sentido ficar aqui sentado. Vou partir atrás dela, vou caminhar pelo desconhecido. Afinal, nada temo, já nada me interessa.


Capítulo 7: O amanhã

Já não consigo ver nada. Nos confins do horizonte nada existe e a Cidade Invisível, que deixei para trás, já se escondeu detrás da linha do sol-posto.

Não vos consigo precisar quantos mais passos terei de dar para que me cruze com algo pelo caminho.

O pesar do cansaço já me bloqueia a locomoção. Creio que vou parar e descansar neste infinito vazio e partilhar largas horas com a minha mais fiel companheira.

Mas… Que estou a dizer! Até parece que voltei a acreditar no amanhã.

Como posso eu estar a fazer planos?

Estará o Criador a tentar reconverte-me à triste crença de viver de olhos bem fechados?

Não interessa… Estou exausto desta caminhada de hoje. Vou mesmo parar por aqui.

Este eterno silêncio também me faz falta.




Playlist:

Sigur Rós - Sigur Rós (Von, 1997 - Cut)
Factory Floor - A Wooden Box (Untilted, 2010 - Blast First Petite)
Hangdeup - Losing Your Charm (Kicker in Tow, 2002 - Constellation)
Nurse With Wound - Two Mock Projections (Chance Meeting, 1979 - United Dairies)
Faust - Meadow Meal (Faust, 1971 - Universal Distribution)
Cindytalk - Through Water (In This World, 1988 - Touched)
Goblin - Sighs (Suspiria OST, 1977 - Dagored)
Cluster - In Ewigkeit (Sowiesoso, 1976 - Gyroscope)

Programa n.º 2 [28/JUL/2010]

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Capítulo 1: O reacrodar

Fechem os olhos e sejam novamente bem-vindos a esta Cidade.

Cidade onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos.

Durante esta última semana, como bem vos prometi, não voltei a adormecer de olhos aberto. Foram horas e horas acordado de olhos bem fechados.

Também, depois de tudo que vislumbrei na minha última caminhada, erro crasso seria este de redimir a minha vontade às forças gravitacionais que o Criador emana para que a triste e parca alma do meu semelhante fique entregue ao negro e irreversível devolustismo.

Sinto-me mais forte, mais capaz. Renasce em mim uma ânsia de origens galdérias para que me volte a juntar e confundir com os transeuntes.

Cada vez mais me rendo ao incondicionalismo insignificante da condição humana.

Aliás, cada vez que olho para trás e penso nos anos, ou talvez séculos, que dormi de olhos bem abertos, sou assombrado por uma extrema agonia capaz de me fazer vomitar por cima das leis do Criador.

Não sei. Porque me terei eu ausentado desta cidade em busca de outro desígnio?

Que terrível silêncio mudo me terá puxado para este acto volupioso que é abandonar esta cidade?

Não interessa. Já estou de regresso aqui: A Cidade Invisível.



Capítulo 2: Vários caminhos, uma escolha

Já estou cá fora.

No meu pensar, uma voz repte até à exaustão a palavras: “Começa a andar”. Mas para onde irei eu? São tantos os sítios que quero revisitar. Um híbrido de vontade e pesar na consciência afunila-se na minha cabeça, provocando-me uma Taquipsiquia capaz de me voltar a abrir os olhos.

Não pode ser. Vou começar a caminhar sem destino.

Hoje, a Cidade Invisível está especialmente quente. Talvez seja um sinal do criador para que o meu pensar não seja o mais correcto e para que me entregue à estupidificação do acreditar no amanhã.

Em tempos idos, corria um pequeno curso de água pela entranhas desta cidade, por onde a teimosia e egoísmo do Homem se passeava em forma de fauna morta e mefítica.

Mas isso não me importa. Como bem sabem, nesta cidade, já nada importa.

Vou até lá. Talvez o fresco corrompido que aquele curso líquido, que julgo ter por água, me torne o pensar mais fluido.

Mais uma vez, creio ter conhecido uma artimanha para vencer nova batalha ao criador.

Vou andando e, mais uma vez, o som será o meu único companheiro de viagem.



Capítulo 3: Uma pequena pausa no caminho

Que é isto? Que estranho aglomerado de insignificantes semelhantes é aquele? São tantos que, no seu todo, quase conseguem despertar a atenção do criador. Que se passará ali?

Agora que me recordo, esta era uma zona da cidade onde algumas almas solitárias, entregues ao irreversível nojo pelo Criador, se juntavam para partilhar tristes antilogias, capazes de lhes redimir a sua insignificância e incapacidade perante o resto dos seus semelhantes.

Mas que se terá passado?

Terá algum personagem anónimo descoberto uma panaceia lírica para este tormento universal?

Vou ver!

Mas vou-me aproximar a uma velocidade quase tão lenta como àquela que o Homem vai descobrindo a sua incondicional insignificância. Não me quero precipitar e ouvir algo que me volte a querer abrir os olhos.

Pode que esta viagem demore alguns minutos. Tenham calma caros companheiros de viagem. Já vos conto, daqui a nada, o que lá se está a suceder.



Capítulo 4: Esgar fugaz a um sonho

Já estou junto da multidão, Mas não oiço nada. Vou furar por entre os meus semelhantes até à origem da confusão.

Torna-se difícil. Todos se querem rir e ridicularizar o seu semelhante. Todos querem ter algo que os engane quanto à sua patética e microscópica importância para o nascer de um novo dia.

Mas não desisto. A minha perseverança e teimosia há-de me fazer chegar bem próximo do motivo desta agitação.

Calma! Já consegui.

Que é isto? Não creio o que me é mostrado e que entra pelas minhas pálpebras cansadas direito ao meu pensar.

Um personagem, cujas faces não consigo ver, por muito que tente, está em posição vertical, segurando numa das mãos, um pequeno relógio.

Um esgar de gozo e desprezo paira nas primeiras filas de curiosos transeuntes.

Como pode alguém cair em semelhante demência de querer conhecer algo que já nada interessa com maior precisão que a adormecida Providência?

Mais. Como pode alguém nesta cidade ter vontade em saber quantos segundos, ou séculos, faltam para o nascer de um novo dia?

Não entendo como alguém ousa ter em mão um objecto tão desprezível e insignificante. Quem será este personagem anónimo? Por mais que tente, não lhe consigo ver as faces.

Pelas formas do seu corpo, jugo ser uma mulher. Uma mulher de longos cabelos negros. Mas porque será que não lhe consigo ver a rosto?

A multidão, entretanto, já se começou a dispersar. Vou esperar até que todos partam para, assim, tentar descobrir quem é esta semelhante.



Capítulo 5: A constante ânsia pelo futuro

Bem, parece que aquela pequena figura feminina já está sozinha. Vou-me aproximar.

Mas que vem a ser isto? Por muito que ande em volta dela, não lhe consigo ver o rosto. Parece que cada passo que dou em redor dela faz mexer as linhas do horizonte.

Dou voltas e voltas, a uma velocidade tão vertiginosa capaz de me fazer desmaiar. Mas, mesmo assim, não consigo trocar um olhar com esta misteriosa personagem.

Parece que é algo que jamais conseguirei ver. Às tantas, toda a multidão viveu a mesma estranha sensação que eu.

Mas, que poderá ser este aglomerado e ossos e carne que não me permite trocar um olhar?

Nem sei porque insisto tanto. Julgava que já não me interessavam estes estranhos obstáculos no meu caminho.

Julgava que estes dejectos em forma humana que o semelhante jocosamente lança para esta cidade invisível não conseguiriam deter a minha vontade em chegar ao destino a mim prometido.

Talvez esta tenha sido mais uma tentação colocada no meio dos transeuntes desta cidade para que voltem a abrir os olhos.

Pior ainda, terá o Criador transformado o futuro numa triste alegoria em forma de mulher?

Vou continuar a minha caminhada.




Capítulo 6: Brisa adormecida de uma Cidade Invisível

Já sinto uma leve brisa, acompanhada de um odor putrefacto mas doce. Tão doce que me faz sentir ainda mais próximo do eterno sonho de nunca mais abrir os olhos.

Quanto mais me aproximo, mais forte e fresca se torna a brisa. Mais fluente se torna o meu pensar.

Foram tantas as vezes que aqui vim em tempos idos. Foram tantas as promessas de nunca nesta parca vida abrir os olhos…

Todas elas corrompidas. Bastou-me uma pequena oportunidade para os abrir. Bem o sei, somo tantos a querer partir desta cidade. Triste ignorância. Afinal, estou de regresso e não sinto saudades dos tempos que levei dormidos de olhos bem abertos.

A brisa já se tornou tão forte que até me imobilizou as pálpebras. Agora, o maior horror que poderia sentir era voltar a abrir os olhos.

Afinal, a insignificância de tempos futuros e o desprezo pelos tempos idos faz-nos render à simples condição humana. Viajamos por um tempo que não é mais que um vazio adiamento daquilo que bem sabemos que acontecerá daqui a uns segundos ou daqui a vários milénios.

Não há nada para além disto. São por-de-sóis atrás de por-de-sóis. São passos diante de passos. Nada muda. A triste condição de todos os meus semelhantes está já há muito escrita pela mão do criador.

Entretanto começou a chover. Quem o diria, com todo o calor que sentia. Mas não vou regressar a casa. Vou ficar por aqui, esta fresca brisa fazer-me-á companhia durante longas horas.

A partir de hoje, passarei tantas horas como o meu cansaço mo permita longe do meu quarto. Longe daquela cama, onde, por força da horizontalidade, julguei conseguir vencer o Criador.


Playlist:

Funki Porcini - The Great Drive By (Fast Asleep, 2002 - Ninja Tune)

The Higher Intelligence Agency - Skank (Freefloater, 1995 - Waveform Records)

Pantha du Prince - Walden 2 (This Bliss, 2007 - Dial)

Sun Araw - Horse Steppin (Beach Head, 2008 - Not Not Fun)

Brian Eno - 2/2 (Ambient 1: Music For Airports, 1978 - Polydor)

Can - Future Days (Future Days, 1973 - Mute)

Nektar - Countenance (Journey to the Centre of the Eye, 1972 - Bellaphon Records)

Programa n.º 1 [21/JUL/2010]

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Capítulo 1: O acordar, o começo…


Fechem os olhos e sejam bem-vindos a esta Cidade.

É uma cidade onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos.

Aqui, em tempos idos, uma falsídica luz fotossinteziava emaranhadas ramas de solidão que julgava ter por companheira. É uma cidade onde as utopias apenas são alcançadas através de espelhos deformados pelo negro coração do Homem.

Aqui nada faz sentido para além das procelosas melodias que a Providência adormecida estilhaçou e que agora flutuam vacuamente por todo este éter inútil.

Já há muito tempo que não me levantava desta cama, onde julgava, que por força imobilidade, venceria a terrível angústia de viver de olhos fechados.

Não faz sentido. O Criador, esse, jamais será vencido.

Vou sair daqui. A partir de hoje, darei longas caminhadas por esta cidade, irei até aos sítios mais mirabolantes. Ouvirei histórias. Abrenunciarei o negro cáustico desses tempo idos. Voltarei a acreditar em promessas de um futuro vacuamente flutuante.

Afinal, sou mais um anónimo transeunte, que se junta e se confunde com todas as outras personagens anónimas. Bem o sei, faço parte do carácter desta cidade: A Cidade Invisível.



Capítulo 2: O despertar

Não sei, sinto-me um bocado desorientado. Afinal, já perdi a noção de quantos anos, ou talvez séculos, levo dormidos de olhos bem abertos. Já quase não me lembrava do que é estar acordado de olhos fechados.

Entretanto, já abri a pequena janela deste quarto, por onde entra uma luz fátua, que ainda se consegue sobrepor ao pérfido e adormecido eleatismo do Homem.

Lá fora, os transeuntes viajam a uma velocidade tão rápida como a ânsia que têm que chegue o dia em que a sua força seja mais forte que a vontade.

Porém, alguns ainda param. Admiram a verticalidade urbana imposta pelo torvo nojo que o homem sente pelo seu semelhante. O desespero por uma elevação de alguns metros parece adiar uns dias a inevitável redução incondicional ao insignificante de alguns personagens anónimos.

Como pode o Homem querer viver fora desta cidade, quando a sua perseverança lhe bloqueia as articulações da mão com que rescreve as leis do Criador?

Como pode o Homem partir desta cidade quando nem a solidão consegue ter por companheira?

Pior ainda, como posso eu criticar a Cidade Invisível se nem da minha cama me levanto?

É hora de sair. Vou começar a viagem.



Capítulo 3: O primeiro contacto com a Cidade Invisível

Este som que escuto em fundo, este aroma que me reactiva memórias que julgava ter por fantasia… Faz tanto tempo que não me juntava com a multidão.

Estranhamente, parece que os longos anos que dormi de olhos abertos duraram menos tempo que estes instantes de descer do meu quarto até à rua. Aliás, parece que nunca tinha saído desta cidade invisível.

Sinto que reconheço toda a gente, mas, no entanto, nem as suas caras consigo ver. Não faz falta! A solidão será a minha única companheira nesta cidade, sei-o bem. Mas não me interessa. Nem os horrores dos séculos passados conseguirão matar o lirismo dos meus sonhos.

Bem sei, minto-me em demasia.

Talvez não devesse ter saído da cama ou, talvez, nunca me deveria ter deitado nela. Não sei. Também, como já vos disse, nesta cidade já nada faz sentido.

Julgo haver um velho jardim aqui por perto. Um jardim rasgado por vários andares de linhas de eléctricos, onde a sua sombra já pouca vegetação deixa viver.

Vou até lá e, durante essa viagem, a paisagem será feita apenas de sons. Ainda não me sinto preparado para falar com nenhum transeunte.



Capítulo 4: O jardim

Como é possível? Não creio o que o mudo silêncio da minha vista me mostra. Terei voltado a adormecer de olhos abertos?

Julgo ver uma florida elevação neste jardim, que, através de um enferrujado pilar, se desloca como transeuntes numa procissão em busca daquilo que bem sabem que nunca poderão ter.

Crisântemos, lírios, diosmas, túlipas, todos fazem parte desta caminhada até a uma pequena frincha de luz entre os andares de monstruosas estruturas metálicas e por onde também corre um pequeno fio de água.

Como bem vos disse, foram muitos os anos, ou talvez séculos, que passei longe desta Cidade Invisível.

Que terá sucedido para que volte a ver cores nesta cidade? Com certeza não terá sido vontade do meu semelhante. E o Criador, esse, já há muito que jaz adormecido no seu próprio reflexo.

Não consigo entender. Terá tido, talvez, esta forma de vida não inteligente a capacidade de fazer aquilo que os transeuntes desta cidade tentam fazer desde o dia em que decidiram viver acordados de olhos bem fechados?

Terão visto estes coloridos fitomórficos algo que nos escapa há muito tempo?

Agora que o penso, nunca na minha insignificante existência tinha visto uma luz tão flórida nesta cidade.

A verdade é que nesta cidade ninguém quer receber uma luz tão verdadeira sobre a sua face, não se lhes vão abrir os olhos e adormecer no eterno horror que é viver morto de olhos bem abertos.

Calma, acho que começo a entender algo que me escapava há muito tempo. O Homem não anseia o bem nem o belo, isso fá-lo-ia sentir bem com o seu semelhante. Fá-lo-ia dar razão ao Criador. Pior ainda, fá-lo-ia ficar mais insignificante, e despertar a maior humilhação que o Homem pode sentir, que é respeitar o seu próprio semelhante.

Vou-me sentar um bocado por aqui e contemplar toda esta enigmática questão.

• • •

Não sei. Já não faz sentido ficar mais tempo neste jardim.

Ainda hoje estou a dar a minha primeira caminhada pela Cidade Invisível e já me fartei de julgar o meu semelhante. Talvez esta ânsia adormecida pelo longos anos que levei dormidos de olhos bem abertos me tenha mudado.

Prometo-o. Hoje não, mas, num dia destes dias, talvez regresse aqui e volte a minha face para aquela flórida luz.

Vou prosseguir a minha viagem. Talvez tenha caminhado muito. Vou regressar no velho eléctrico para casa e, através das suas janelas enegrecidas, vislumbrar o compungido carácter desta cidade.



Capítulo 5: O regresso a casa: final da primeira viagem

Bem, é aqui a paragem de minha casa.

Creio que esta primeira viagem pela Cidade Invisível foi suficiente para me voltar a confundir com a cidade.

Estou cansado. Vou regressar ao meu quarto.

Pelo menos, hoje vi que nesta cidade algo está a mudar. Ou talvez seja eu que estou a mudar. Ou, talvez, já não haja mais espaço no parco pensar do meu semelhante para que o negro desta cidade se torne ainda mais horrendo que o próprio coração do Homem.

Desta vez não vou abrir os olhos. Vou esperar por mais caminhadas. Vou voltar a falar com personagens anónimos.

Afinal, hoje recomeço a viver nesta cidade. Na Cidade Invisível.


Playlist:

Bohren & Der Club of Gore - Midnight Black Earth (Black Earth, 2002 - Wonder Records)
Kammerflimmer Kollektief - Nachtwacht, 15 September (Wilding, 2010 - Staubgold)
Boards of Canada - Turquoise Hexagon Sun (Music Has The Right to Children, 1998 - Matador)
Future Sound of London - Dead Skin Cells (Lifeforms, 1994 - Astralwerks)
Aphex Twin - Actium (Selected Ambient Works 85-92, 1992 - PIAS)
Cybotron - Medusa (Colossus, 1979 - INAK Records/Neutron Star)
Moskwa TV - Radio and TV (Dynamic + Discipline, 1985 - Westside Music)
Xinlisupreme - All You Need is Love Was Not True (Tomorrow Never Comes, 2002 - FatCat Records)

O Começo...

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Uma cidade invisível, onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos. Durante longas caminhadas através dela, visitando os mais mirabolantes espaços, serão ouvidas histórias e estórias, abrenunciando o negro e o histerismo cáustico de tempos idos e promessas de um futuro vacuamente flutuante.

Estreia dia 21 de Julho de 2010. Para escutar em 107.9FM ou www.ruc.fm

Realização e locução de Pedro Roquinho.