Programa n.º 2 [28/JUL/2010]

| 0 comentários












Capítulo 1: O reacrodar

Fechem os olhos e sejam novamente bem-vindos a esta Cidade.

Cidade onde as suas ruas e becos, amontoados de abandono, são percorridos por personagens anónimos.

Durante esta última semana, como bem vos prometi, não voltei a adormecer de olhos aberto. Foram horas e horas acordado de olhos bem fechados.

Também, depois de tudo que vislumbrei na minha última caminhada, erro crasso seria este de redimir a minha vontade às forças gravitacionais que o Criador emana para que a triste e parca alma do meu semelhante fique entregue ao negro e irreversível devolustismo.

Sinto-me mais forte, mais capaz. Renasce em mim uma ânsia de origens galdérias para que me volte a juntar e confundir com os transeuntes.

Cada vez mais me rendo ao incondicionalismo insignificante da condição humana.

Aliás, cada vez que olho para trás e penso nos anos, ou talvez séculos, que dormi de olhos bem abertos, sou assombrado por uma extrema agonia capaz de me fazer vomitar por cima das leis do Criador.

Não sei. Porque me terei eu ausentado desta cidade em busca de outro desígnio?

Que terrível silêncio mudo me terá puxado para este acto volupioso que é abandonar esta cidade?

Não interessa. Já estou de regresso aqui: A Cidade Invisível.



Capítulo 2: Vários caminhos, uma escolha

Já estou cá fora.

No meu pensar, uma voz repte até à exaustão a palavras: “Começa a andar”. Mas para onde irei eu? São tantos os sítios que quero revisitar. Um híbrido de vontade e pesar na consciência afunila-se na minha cabeça, provocando-me uma Taquipsiquia capaz de me voltar a abrir os olhos.

Não pode ser. Vou começar a caminhar sem destino.

Hoje, a Cidade Invisível está especialmente quente. Talvez seja um sinal do criador para que o meu pensar não seja o mais correcto e para que me entregue à estupidificação do acreditar no amanhã.

Em tempos idos, corria um pequeno curso de água pela entranhas desta cidade, por onde a teimosia e egoísmo do Homem se passeava em forma de fauna morta e mefítica.

Mas isso não me importa. Como bem sabem, nesta cidade, já nada importa.

Vou até lá. Talvez o fresco corrompido que aquele curso líquido, que julgo ter por água, me torne o pensar mais fluido.

Mais uma vez, creio ter conhecido uma artimanha para vencer nova batalha ao criador.

Vou andando e, mais uma vez, o som será o meu único companheiro de viagem.



Capítulo 3: Uma pequena pausa no caminho

Que é isto? Que estranho aglomerado de insignificantes semelhantes é aquele? São tantos que, no seu todo, quase conseguem despertar a atenção do criador. Que se passará ali?

Agora que me recordo, esta era uma zona da cidade onde algumas almas solitárias, entregues ao irreversível nojo pelo Criador, se juntavam para partilhar tristes antilogias, capazes de lhes redimir a sua insignificância e incapacidade perante o resto dos seus semelhantes.

Mas que se terá passado?

Terá algum personagem anónimo descoberto uma panaceia lírica para este tormento universal?

Vou ver!

Mas vou-me aproximar a uma velocidade quase tão lenta como àquela que o Homem vai descobrindo a sua incondicional insignificância. Não me quero precipitar e ouvir algo que me volte a querer abrir os olhos.

Pode que esta viagem demore alguns minutos. Tenham calma caros companheiros de viagem. Já vos conto, daqui a nada, o que lá se está a suceder.



Capítulo 4: Esgar fugaz a um sonho

Já estou junto da multidão, Mas não oiço nada. Vou furar por entre os meus semelhantes até à origem da confusão.

Torna-se difícil. Todos se querem rir e ridicularizar o seu semelhante. Todos querem ter algo que os engane quanto à sua patética e microscópica importância para o nascer de um novo dia.

Mas não desisto. A minha perseverança e teimosia há-de me fazer chegar bem próximo do motivo desta agitação.

Calma! Já consegui.

Que é isto? Não creio o que me é mostrado e que entra pelas minhas pálpebras cansadas direito ao meu pensar.

Um personagem, cujas faces não consigo ver, por muito que tente, está em posição vertical, segurando numa das mãos, um pequeno relógio.

Um esgar de gozo e desprezo paira nas primeiras filas de curiosos transeuntes.

Como pode alguém cair em semelhante demência de querer conhecer algo que já nada interessa com maior precisão que a adormecida Providência?

Mais. Como pode alguém nesta cidade ter vontade em saber quantos segundos, ou séculos, faltam para o nascer de um novo dia?

Não entendo como alguém ousa ter em mão um objecto tão desprezível e insignificante. Quem será este personagem anónimo? Por mais que tente, não lhe consigo ver as faces.

Pelas formas do seu corpo, jugo ser uma mulher. Uma mulher de longos cabelos negros. Mas porque será que não lhe consigo ver a rosto?

A multidão, entretanto, já se começou a dispersar. Vou esperar até que todos partam para, assim, tentar descobrir quem é esta semelhante.



Capítulo 5: A constante ânsia pelo futuro

Bem, parece que aquela pequena figura feminina já está sozinha. Vou-me aproximar.

Mas que vem a ser isto? Por muito que ande em volta dela, não lhe consigo ver o rosto. Parece que cada passo que dou em redor dela faz mexer as linhas do horizonte.

Dou voltas e voltas, a uma velocidade tão vertiginosa capaz de me fazer desmaiar. Mas, mesmo assim, não consigo trocar um olhar com esta misteriosa personagem.

Parece que é algo que jamais conseguirei ver. Às tantas, toda a multidão viveu a mesma estranha sensação que eu.

Mas, que poderá ser este aglomerado e ossos e carne que não me permite trocar um olhar?

Nem sei porque insisto tanto. Julgava que já não me interessavam estes estranhos obstáculos no meu caminho.

Julgava que estes dejectos em forma humana que o semelhante jocosamente lança para esta cidade invisível não conseguiriam deter a minha vontade em chegar ao destino a mim prometido.

Talvez esta tenha sido mais uma tentação colocada no meio dos transeuntes desta cidade para que voltem a abrir os olhos.

Pior ainda, terá o Criador transformado o futuro numa triste alegoria em forma de mulher?

Vou continuar a minha caminhada.




Capítulo 6: Brisa adormecida de uma Cidade Invisível

Já sinto uma leve brisa, acompanhada de um odor putrefacto mas doce. Tão doce que me faz sentir ainda mais próximo do eterno sonho de nunca mais abrir os olhos.

Quanto mais me aproximo, mais forte e fresca se torna a brisa. Mais fluente se torna o meu pensar.

Foram tantas as vezes que aqui vim em tempos idos. Foram tantas as promessas de nunca nesta parca vida abrir os olhos…

Todas elas corrompidas. Bastou-me uma pequena oportunidade para os abrir. Bem o sei, somo tantos a querer partir desta cidade. Triste ignorância. Afinal, estou de regresso e não sinto saudades dos tempos que levei dormidos de olhos bem abertos.

A brisa já se tornou tão forte que até me imobilizou as pálpebras. Agora, o maior horror que poderia sentir era voltar a abrir os olhos.

Afinal, a insignificância de tempos futuros e o desprezo pelos tempos idos faz-nos render à simples condição humana. Viajamos por um tempo que não é mais que um vazio adiamento daquilo que bem sabemos que acontecerá daqui a uns segundos ou daqui a vários milénios.

Não há nada para além disto. São por-de-sóis atrás de por-de-sóis. São passos diante de passos. Nada muda. A triste condição de todos os meus semelhantes está já há muito escrita pela mão do criador.

Entretanto começou a chover. Quem o diria, com todo o calor que sentia. Mas não vou regressar a casa. Vou ficar por aqui, esta fresca brisa fazer-me-á companhia durante longas horas.

A partir de hoje, passarei tantas horas como o meu cansaço mo permita longe do meu quarto. Longe daquela cama, onde, por força da horizontalidade, julguei conseguir vencer o Criador.


Playlist:

Funki Porcini - The Great Drive By (Fast Asleep, 2002 - Ninja Tune)

The Higher Intelligence Agency - Skank (Freefloater, 1995 - Waveform Records)

Pantha du Prince - Walden 2 (This Bliss, 2007 - Dial)

Sun Araw - Horse Steppin (Beach Head, 2008 - Not Not Fun)

Brian Eno - 2/2 (Ambient 1: Music For Airports, 1978 - Polydor)

Can - Future Days (Future Days, 1973 - Mute)

Nektar - Countenance (Journey to the Centre of the Eye, 1972 - Bellaphon Records)

0 comentários: