Programa n.º 3 [04/AGO/2010]

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Capítulo 1: A smi-horizontalidade

Fechem os olhos e sejam novamente bem-vindos à Cidade Invisível.

São rua e becos, amontoados de abandono, percorridas por personagens anónimos.

Como ficou prometido na última vez, não regressei a casa. Fiquei aqui, no mesmo exacto sítio de onde parti em busca de algo que me fizesse esquecer isto que agora tanto anseio.

Foram dezenas de horas junto desta fresca brisa, junto de milhares e milhares de odores putrefactos diferentes, que nada mais são que o reflexo do egoísmo do homem.

Passaram por mim dezenas de anónimos transeuntes. Alguns sozinhos, outros acompanhados pela solidão.

Não há tempo para perder com palavras e gestos simples, mas também não há espaço para o despotismo egoísta que por vezes se nos apresenta no pensar como falsídica esperança de acreditar no amanhã.

Gostava de conhecer alguém nesta cidade que se tivesse reduzido à sua inegável insignificância de tal modo que já tivesse o pensar livre. Tão livre que o tornasse já capaz de pensar em algo diferente, algo que, mais século, menos século, se torne obsoleto e patético.

Mas, onde procurar um semelhante assim nesta cidade?

Talvez nos arredores, longe do negro epicentro criacionista que estes ignóbeis semelhante criaram e no qual se refugiam, pensando que a adormecida Providência, num acto de extremo gozo, os tenha tido como protegidos.

Bem, está na hora. Vou começar a minha viagem de hoje por esta Cidade Invisível.




Capítulo 2: A viagem

Já estou farto de caminhar. Acho que vou apanhar o velho eléctrico.

Adoro o facto de olhar pela janela e conseguir ver, num espaço de tempo tão reduzido, uma quantidade tão grande de simples transeuntes, de realidades e adiamentos, mas, essencialmente, gosto do simples facto de ver o mundo a uma velocidade que o Criador nunca pensou que insignificantes criaturas do belo o conseguissem fazer.

Gosto de desafiar os limites impostos pela adormecida Providência.

Bem, vou entrar no velho eléctrico e, sentado nos seus austeros bancos de madeira, contemplar toda esta viagem do centro da cidade até aos seus arredores.



Capítulo 3: Os arredores da Cidade Invisível

Já se ouvem os fortes ventos vindos dos longínquos e solitários arrabaldes da Cidade Invisível.

Aqui, marginais transeuntes, entregaram-se há muito ao pérfido abraço infinito e vazio de quem já nem no dia de hoje acredita.

Estou tão longe do negro coração desta cidade que até já consigo ver a eterna claridade do vazio flutuante, onde nunca nada fez sentido.

É um sítio tão distante daquele quarto onde me entreguei à triste ideia de dormir de olhos bem abertos que quase parece que se passaram vários séculos desde que comecei a caminhada de hoje.

O certo é que, por muito que prolongue a minha vista até às linhas do horizonte, não consigo ver ninguém.

Será que toda a gente fugiu para o centro da Cidade Invisível?

Não pode ser. Tem de haver por aqui alguém.

Talvez este forte vento soprado do profundo desconhecido distorça a luz que oscila na linha do horizonte. Talvez eu não esteja a procurar bem.

Impossível será que todos os meus semelhantes caíram na estupidificação do acreditar no amanhã.

Vou-me sentar por aqui e esperar tanto quanto seja preciso até que encontre algum semelhante.




Capítulo 4: Vultos disformes

Já levo aqui tanto tempo e ainda não encontrei ninguém. Se calhar, por muito que me custe a crer, o meu maior receio concretizou-se: todas as tristes almas solitárias viraram espíritos sonhadores.

Não pode o meu semelhante ter caído em semelhante artimanha do Criador.

Serei eu o único nesta Cidade Invisível a ter voltado a viver de olhos bem fechados após vários séculos dormidos de olhos abertos?

Isso fazer-me-ia o personagem anónimo mais importante desta cidade.

Não pode ser! O Criador, com certeza, não viu em mim um filho aqui tornado para se entregar ao irreversível nojo que é pensar ser melhor que todos os outros.

Vou continuar à espera. Nem que o virar dos milénios me torne pó me mexerei daqui enquanto não vir alguém por estes lados, alguém que já não partilhe o triste sentimento de acreditar no amanhã.



Capítulo 5: Vultos disformes 2

O vento torna-se cada vez mais forte e sol fica mais desbotado que nunca.

Talvez o mudo silêncio que emana esta triste paisagem tenha consumido todos aqueles que aqui vieram procurar a mais infinda pretensão do Homem, que é o já nada importar e a vácua solidão tornar-se a sua melhor amiga.

Mas não vou desistir de esperar. O Criador não me levará a abandonar esta cidade de novo.

Entretanto a noite já caiu. Nada me importa. Já me prometi com a eternidade que esperaria aqui por um reflexo do meu pensar em forma de gente.

Vou continuar a esperar, vou continuar a esperar.



Capítulo 6: Companheiro de viagem?

Calma. O que vem a ser aquele vulto que se aproxima de mim mais rápido que o próprio vento seco das profundidade do desconhecido?

Julgo ser um semelhante. Mas um semelhante que vem para além dos arrabaldes da Cidade Invisível.

Não conheço ninguém que se tenha perdido para além deste pérfido e terrível aglomerado urbano.

A julgar pela firmeza dos seus passos, julgo que este lugar lhe será uma constante.

Aproxima-se cada vez mais. Já quase o consigo ver.

Mas, como pode ser? Uma mulher, de longos cabelos negros, que agora já está verticalmente imposta diante dos meus olhos, pára com um extremo silêncio e, novamente, não lhe consigo ver o rosto, por muito mais que o tente.

Será esta a semelhante que vi junto da multidão de relógio em mão? Só pode ser ela. Mas como é que não lhe consigo ver as faces?

Entretanto, já falei com ela, mas não obtive qualquer tipo de resposta.

Será mais um obstáculo do criador para que volte a acreditar no amanhã? Não entendo.

Entretanto, essa misteriosa figura já partiu. Mesmo antes que conseguisse esboçar o mais pequeno diálogo. Quem será? E porque me persegue? Será uma alma de tal modo evoluída que já nem o diálogo ou o rosto que a distingue de todos os anónimos transeuntes são importantes para ela?

Acho que já não faz sentido ficar aqui sentado. Vou partir atrás dela, vou caminhar pelo desconhecido. Afinal, nada temo, já nada me interessa.


Capítulo 7: O amanhã

Já não consigo ver nada. Nos confins do horizonte nada existe e a Cidade Invisível, que deixei para trás, já se escondeu detrás da linha do sol-posto.

Não vos consigo precisar quantos mais passos terei de dar para que me cruze com algo pelo caminho.

O pesar do cansaço já me bloqueia a locomoção. Creio que vou parar e descansar neste infinito vazio e partilhar largas horas com a minha mais fiel companheira.

Mas… Que estou a dizer! Até parece que voltei a acreditar no amanhã.

Como posso eu estar a fazer planos?

Estará o Criador a tentar reconverte-me à triste crença de viver de olhos bem fechados?

Não interessa… Estou exausto desta caminhada de hoje. Vou mesmo parar por aqui.

Este eterno silêncio também me faz falta.




Playlist:

Sigur Rós - Sigur Rós (Von, 1997 - Cut)
Factory Floor - A Wooden Box (Untilted, 2010 - Blast First Petite)
Hangdeup - Losing Your Charm (Kicker in Tow, 2002 - Constellation)
Nurse With Wound - Two Mock Projections (Chance Meeting, 1979 - United Dairies)
Faust - Meadow Meal (Faust, 1971 - Universal Distribution)
Cindytalk - Through Water (In This World, 1988 - Touched)
Goblin - Sighs (Suspiria OST, 1977 - Dagored)
Cluster - In Ewigkeit (Sowiesoso, 1976 - Gyroscope)

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