Programa N.º 7 [01/SET/2010]

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Capítulo 1: A Sala (final)

Durante todo este tempo, permaneci aqui, entregue ao smi-abandono. A única companhia é a minha ilusão de trocar uma palavra com esta estranha semelhante.

Dei milhares e milhares de voltas a esta sala. Não há mais nada para além daquilo que vos descrevi. No entanto, durante estas últimas horas, algo de estranho se passou aqui.

Por uma pequeníssima frincha, imperceptível à vista mais desatenta, entrou um forte raio de sol. Incidiu rigorosamente no meio deste espaço. Foi o suficiente para iluminar toda a sala ou, pelo menos, para me encolher as retinas até ao mais microscópico tamanho.

Com este estranho incidente, foi possível descobrir mais pormenores nestas paredes. Junto às arestas que formam o tecto, cresce um delicado fitomorfo, de pujantes tons esverdeados, peregrinando em direcção àquela pequena frincha.

Foi-me possível ver, também, que nos quatro cantos da sala corre um ténue fio de água, que recolhe sob o soalho, impossibilitando-me saber qual o seu destino.

Estou perante um espectáculo em tudo semelhante ao que vi na minha primeira caminhada pela Cidade Invisível.

O certo é que lá fora, os meus olhos vislumbraram os mais verdejantes prazeres.

Com bem sabeis, a vegetação, neste vácuo e flutuante vazio, ao que ignóbeis e idos semelhantes chamaram de Cidade Invisível, torna-se mais rara que os motivos para viver de olhos bem fechados.

Não sei que espaço será este. Também não sei porque não lhe consigo ver o rosto àquela semelhante que me fez viajar para tão longe daquele quarto.

É a hora! Vou falar com ela. Nem que as impossibilidades da minha condição humana sejam entregues em forma de triste esgar às mãos do Criador.




Capítulo 2: O diálogo

Estou em frente à estranha semelhante.

Como seria expectável, não lhe consigo ver o rosto. No entanto, julgo ter nova estratégia. Vou-lhe tocar.

Mas, que estranha sensação. O corpo parece ser feito de gelo. No entanto, parece humano ao tacto. Do interior dos seus longos cabelos negros, sai também um frio insuportável. Ela continua a tocar o seu piano, como se nada do que fizesse lhe importasse.

Entretanto, voltei a tocar-lhe, desta vez no braço. Aliás, agarrei-lhe o braço, de modo a impossibilitar-lhe o que está a fazer.

Calma, parou de tocar.

Uma forte brisa gelada fez-se sentir em toda a sala. Um sensação de pânico tomou conta de mim. A estranha semelhante estava a voltar o seu rosto para o meu. Não sei se o está a fazer muito lentamente. Mas, a mim, este momento parece-me interminável. Espero por ele há demasiado tempo.

Mas… Que espanto! Já vejo o seu rosto. É de uma delicadeza tal que faz parecer a pena da mais pequena e exótica ave pesada. Os seus olhos, negros como o próprio coração do Homem, transmitem-me uma tristeza tal que nem o maior dilúvio em forma de lágrimas seria capaz de apaziguar este desolação que tomou conta de mim.

Sinto-me encandeado, desorientado. Não sei que fazer nem como me comportar.

Entretanto, esta estranha semelhante, segurou-me na mão e disse: “Respiramos a violação do dever pelos poros. Regressa onde jaz a Providência adormecida”.

E num piscar de olhos, desaparece. A sala tornou-se negra, o espectáculo que antes vos descrevi lá fora, deve-se estar a repetir. Talvez, mais um ciclo termina ou começa e uma verdade foi conhecida.

A triste e adormecida Providência só pode repousar no coração da Cidade. É para que lá devo ir.

Está na hora de regressar à Cidade Invisível.




Capítulo 3: O regresso à Cidade Invisível

Já me fiz ao caminho de regresso à Cidade Invisível.

As longas cortinas de areia, distorcidas pelo extremo calor que se faz sentir, fazem deste trajecto todo um calvário.

Mas nada me interessa. Caminho com um destino, com uma verdade conhecida.

Agora que o penso, acarretei a ordem daquela semelhante, mas, na realidade, nem a questionei. Nem a pensei. Ajo quase que por amor cego, mais digno de um adolescente que acaba de descobrir os voluptuosos prazeres carnais.

Certo é que acabei também de experimentar algo pela primeira vez que há muito asneava: um semelhante imune aos tristes espectáculos da parca condição humana, que foge daquela cidade e que já nada se importa com o amanhã.

Não sei quem me poderia dar conselhos mais sábios!

Entretanto, o ritmo e a vontade a que viajo são já demasiadamente marcados. Não há regresso. Já não há espaço para incertezas.

Não vos consigo dizer para onde vou ao certo. Mas, na realidade, nunca na minha vida tive tantas certezas do que estou a fazer.

O meu objectivo? O coração da Cidade Invisível.


Playlist:

Tony Conrad with Faust - From the Side of the Machine [Outside the Dream Syndicate, 1973 - Table of the Elements]
Cabaret Voltaire - A Thusand Ways [Red Meca, 1981 - Mute]
Muslimgauze - Muslims die India [Mullah Said, 1998 - Staalplaat]
Harry Partch - Exordium: The Beginning Of A Web [Desilution of the Fury, 1999 - Innova]

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